Feitiço para Consertar o Passado

Angelique era uma bruxa que tentava preparar suas poções, colocando os ingredientes num caldeirão, mas estava errando toda hora no preparo de sua poção mágica. 

Ora era a ansiedade de dar certo, ora era o medo que desse errado. 

-Ai, Aqueronte, já roubamos todos os relógios da cidade que conseguimos e eu sei que não posso errar mais, só que tente me entender, por favor, porque para mim isso tudo é tão importante que é impossível não ficar nem um pouco nervosa. 

Aqueronte, a gata preta de Angelique, limitou-se a um miado de desconfiança, pois a bruxa (que apesar de jovem, não era nada inexperiente) diante daquele preparo estava literalmente com o coração na mão, pois se desse certo, ela poderia enfim voltar ao passado e salvar seu amor de uma morte terrível. Se desse errado, não é que desistiria, apenas já tinha tentado tantos outros métodos antes que sabia que estava cada vez mais próxima de não encontrar nenhuma outra fonte de informações ou mais recursos que ainda pudesse usar e tentar resolver seu problema. Isto se ainda houvesse algo a mais para tentar porque já achava que aquela era pelo visto sua última oportunidade. 

Angelique jamais se recuperara da morte de seu namorado, o clérigo Monblack. O romance deles tinha sido um tormento envolto em encontros secretos por todo tempo que durou – apenas um ano -, mas foi um verdadeiro encontro de almas (infelizmente de almas em diferentes lados da vida.) 

Monblack era o mais cotado para assumir a igreja principal do feudo do norte e foi mesmo uma ironia muito grande ele ter se perdido justo na floresta de Angelique, após uma missão de evangelização. 

Tinha perdido o mapa por causa de um susto quando foi encher seu cantil no rio e um urso selvagem o avistou e veio para cima dele, e poderia ter acabado ali sua vida, se não fosse por Angelique, que tinha saído para procurar alimentos, ter o encontrado e o salvado. 

Ele já tinha arranhões deixados pelo urso e se não fosse por suas roupas grossas a coisa poderia ter sido muito pior. Angelique, sempre gentil, ajudou-o, levando-o para sua cabana para que pudesse tratar das feridas dele, mas o que acabou surgindo ali marcou profundamente a alma dos dois. 

Preconceitos; opiniões divergentes; o que o lado da igreja ou o lado da vida livre no campo de uma bruxa achava sobre o outro… nada disso importava quando os dois se encontravam. 

Todavia, apesar dos inúmeros sacrifícios (e lógico, feitiços) para viabilizar seus encontros, certa noite um cardeal notou o comportamento esguio e sorrateiro de Monblack e descobriu que ele estava saindo na calada da noite justo para se encontrar com uma bruxa. 

Na manhã seguinte, bem cedo, quando ele estava saindo da cabana de Angelique e já estava na trilha com seu cavalo, esse cardeal o encurralou e o derrubou da montaria,  perfurando-o e o chamando de traidor por pensar que poderia manchar o nome da igreja e sair ileso. 

Angelique acordou desesperada com uma premonição mostrando em detalhes a morte dele naquele momento e sabia que já era tarde, até mesmo para conseguir fazer algum feitiço e tentar recuperar e trazer de volta a alma dele. 

No entanto, sabia que sua premonição, na verdade, era para avisá-la de que seu destino seria o mesmo se não se ocupasse de fugir antes que aquele cardeal voltasse com mais soldados para poder matá-la também e para fazer com que ela não pudesse mais corromper nenhum homem santo. 

Então a bruxa teve que achar forças nem sabia como por estar com seu coração quebrado, para ainda pegar só o necessário e guardar em suas bolsas mágicas, para então, fugir com seu cavalo para outro lugar mais bem protegido e distante naquela extensa floresta que ela já conhecia muito bem, desde menina, porque sempre morara ali antes que toda a sua família e clã de feiticeiros e bruxas tivessem sido mortos pelas mãos da inquisição da igreja. 

Infelizmente, ela era a última da sua linhagem e tudo que queria era viver em paz em comunhão com a natureza, e depois de já ter se acostumado apenas com a presença e amizade dos animais ali da floresta, sabia com dor que talvez tivesse sido o pior erro de sua vida ter se apaixonado justo por alguém que pertencia ao bando que matou sua família e o resto de seu clã. 

Mas o coração gosta de pregar peças até nas pessoas mais preparadas e Angelique procurou fazer só o que lhe restava que era tentar sobreviver ao máximo como já tinha sido sua sina até então. 

Assim depois de usar vários feitiços para despistar as tropas inimigas e ter enfim notado que desistiram de encontrá-la porque achavam que ela tinha sumido de forma misteriosa pôde dar andamento em seu plano de tentar de alguma forma recuperar seu amado. 

Porém, tudo que testou como criar um golem que parecesse com ele; voltar ao local onde ele morrera para tentar chamar o espírito dele de novo e até feitiços que quase pôs sua própria vida em risco, fracassou. 

Até que conseguira encontrar em um livro antigo a fórmula de uma poção para voltar no tempo e tratou de conseguir o mais rápido que pôde tudo que necessitaria para fazê-la. 

E aquele era o grande dia de usá-la. 

-Vamos, Aqueronte, que hoje tenho certeza que vai dar certo – falou Angelique pegando sua gata e a colocando dentro de uma gaiola e a prendendo ao lado de seu cavalo, para ir até aquela área de novo mas que se até então lhe tinha trazido tantas memórias tristes, agora parecia que tudo seria diferente. 

A bruxa desceu de seu cavalo e foi andando até o ponto exato onde já tinha intuído que o corpo de seu amado tinha caído já desfalecido e sabia que – pelo livro – estar ali no local da morte dele era mais importante para o feitiço funcionar, do que se fosse feito sobre o túmulo dele, porque a ideia básica daquela magia era puxar o fio do tempo do momento do incidente para que o fio não passasse por lá e o evento não acontecesse. Então, naturalmente, nem mesmo era para existir a sepultura de Monblack porque ele ainda estaria vivo para estar com Angelique. 

Ela despejou a poção que caiu com o barulho estridente de parafusos de vários relógios e ponteiros em um círculo perfeito ao redor das folhas que não estavam mais sujas de sangue, pois já fazia meses que camponeses da região deu um enterro mais digno para Monblack. 

Então ajoelhou-se e concentrou-se nele e em seu cavalo passando por ali seguros; indo embora em mais um dia típico mas não porque estariam fugindo. 

Concentrou-se imaginando toda a cena: o galope tranquilo do cavalo cinza dele; ele com seus longos cabelos pretos ao vento e sua barba ralada ainda mais linda com o sorriso de quem acabou de ver sua amada. 

Imaginou fortemente ele conseguindo chegar na casa dele, que ironicamente ficava perto da igreja principal da cidade (mas não se deteve muito nessa construção e sim que ele entrava e estava bem), indo tocar a vida e seus deveres de trabalho para o dia como sempre fizera. 

Também aproveitou para pensar em si mesma em sua cabana, limpando-a e fazendo o almoço toda feliz por ter passado uma noite cheia de amor com ele, e que à tarde produziria mais poções para deixar pela floresta para as camponesas – embora não pudesse ter contato com elas, para não se expor e não ser denunciada para a igreja, ainda assim sabia que muitas entendiam que aquilo era apenas remédios deixados de graça e gostava de poder ajudá-las. 

Enfim uma rotina normal para os dois como tinha sido nos dias anteriores ao desastre. 

Então Aqueronte começou a miar tanto que ela se desconcentrou. Não queria abrir os olhos ainda, porque não tinha ouvido o galope de nenhum cavalo, não tinha sentido o cheiro de seu amado e se ele passasse ali, lógico que a veria e ela poderia falar que estava apenas trabalhando em um feitiço qualquer para melhorar a floresta… 

Mas o que pretendia em sua mente, não foi nada do que aconteceu quando os miados de Aqueronte foram ficando cada vez mais nervosos e ela ao abrir os olhos, notou que infelizmente a floresta toda tinha se convertido em apenas pequenos brotos esparsos no chão, sendo que muitas das árvores frondosas que rodeavam as duas no meio da estrada não tinham nem brotado ainda. 

-O que que aconteceu? – Ela estava paralisada de choque e Aqueronte miava para avisar que nem mesmo o cavalo estava lá. Talvez ele nem fosse ainda um potrinho. 

-Venha, a cidade não é muito longe… – Angelique pegou a gaiola de Aqueronte e foi andando e tentava se concentrar que pelo menos o feitiço tinha dado certo de alguma maneira, só que não adiantava se iludir mais: após horas andando, entendia que já era para ter chegado no limite da floresta e já era para ver a cidade lá embaixo e entre os montes. Mas não havia nada além de um vale despovoado, logo, nenhuma alma viva para quem pudesse perguntar temerosamente em que ano estava. 

-Será que colocamos relógios demais naquela poção? – perguntou para sua gata, após fazer o caminho de volta e tentando não entrar em pânico, mas a verdade é que até sua cabana tinha sumido e agora compreendia que tinha cometido um erro irreversível regredindo demais para o passado e que não tinha mais como voltar para o seu tempo presente correto.  

Com profunda mágoa encarou que só lhe restava se conformar em ter que se sustentar e se virar naquele momento em que fora parar e engolir a ironia que agora tudo que queria era voltar para o futuro ou melhor,  para o presente que acabou deixando para trás, por não ter aceitado as mudanças da vida, tanto que acabou presa literalmente num passado onde nada tinha acontecido e nem seu amor tinha nascido.  

Porém, com atitude positiva, tentou se convencer que se ele não existia, então ele não tinha como sofrer tanto como ela estava e tinha que aguentar de alguma forma, porque sempre fora uma sobrevivente.

Por Gisele Portes

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