Prisão Invisível

Judith acordou num quarto completamente branco e sem janelas. Não estava mais com sua calça jeans e camiseta roxa com decote em V, nem tinha sua bolsinha com seus documentos – o que vestia era um simples uniforme branco como o quarto, de calças compridas lisas e blusa de manga curta que lhe dava uma sensação estranha de estar cortada pela metade e só poder ver seus braços, porque o resto de seu corpo parecia fundir-se com toda aquela brancura excessiva e até seus pés estavam com tênis brancos.


-Onde foi que eu vim parar? – Ela se perguntou saindo da cama igualmente branca com lençol branco. Deslizou as mãos pelas paredes brancas sem janelas e foi até a porta também branca. Não demorou muito para o pânico bater e ela começar a pensar que já era branco demais para seu gosto e que alguém lá não queria mesmo gastar com um designer de interiores.

Mas tentar manter o humor era apenas um meio para não deixar que o pavor se alastrasse mais rápido ainda, e logo se mostrou uma ferramenta inútil.

-Ei, tem alguém aí fora? – Ela gritou batendo na porta, com dúvida até que se seria uma boa ideia ser ouvida, porque também nem imaginava quem poderia estar lá fora e não sabia se não estavam esperando justamente que ela acordasse para fazer algo de pior contra ela.

As horas foram passando devagar e Judith já tinha sentado ao lado da porta, chateada e com medo, sem nem ser ouvida.

Não sabia quanto tempo estava lá dentro e a única coisa de que se lembrava é que tinha ido para uma festa rave no Rio de Janeiro, e que no meio de uma dança, apareceu um rapaz loiro, alto e de olhos intensamente azuis que a deixou extremamente excitada com a maneira que ele dançava ao seu lado, todo solto e alegre, mas ao invés de ele tentar beijá-la, fez uma menção para irem para um lugar mais distante do palco para que pudessem conversar.

-Você tem um fôlego e tanto! – Ele começou a falar, sorrindo suado, e ela adorou ver aqueles dentes brancos.

-Você também tem muita energia – disse ela tentando corresponder, mas achando estranha a maneira que ele a olhou depois da última palavra, com os olhos cintilando de interesse.


-Boa escolha de palavra. Eu trabalho mesmo com energia e estou agora procurando voluntários com tempo disponível para um projeto.

Aí Judith achou que tinha achado a sorte grande. Porque além de bonito, o cara parecia rico e bem que ela precisava mesmo de um emprego.

-Mas como funciona esse negócio de ser voluntário? – indagou ela, empolgada.

-Primeiro que “voluntário” é um nome apenas porque não podemos garantir um contrato, mas é um teste pago. Pagaremos para todos que entrarem para um grupo de pessoas disposto a testar nosso novo gerador de energia e nosso sistema de inteligência artificial. Você tem interesse?

E o rapaz não precisou dizer mais nada, pois ela sentiu que ia rolar muito dinheiro e aceitou na hora; até porque já tinha mesmo pedido demissão justo naquela semana do serviço de telemarketing que ela não aguentava mais, e estava meio sem saber ainda o que fazer. Sem contar que embora um contrato não fosse garantido, acreditava que se caprichasse, poderia conseguir aquele emprego e teria um chefe muito gato e melhor do que o anterior, e ela o adicionou no celular para ir recebendo mais instruções.

Depois continuaram curtindo demais mesmo a noite, ao ponto de se lembrar que a estendeu num quarto com ele, mas agora não se recordava de mais nada além de que, sem dúvida, aquele quarto não tinha nada a ver com o do hotel onde esteve.

Agora estava num lugar desconhecido, sentindo fome, sede e ainda ninguém tinha aparecido. Até que juntou o pouco que ainda lhe restava de forças e começou a gritar intensamente:

-Ei, tem alguém aí fora? Estou com fome e com sede. Por favor, qualquer pedaço de pão e uma garrafa de água já servem! – Então quando estava prestes a chorar abalada com o silêncio, dúvida e medo do que iria acontecer; sem mais acreditar que alguém viria ajudá-la e sentindo que estava em algum lugar grotesco sendo deixada para morrer por talvez aquele cara da festa que deveria ser um psicopata doente; uma janelinha abriu perto da porta com uma mão robótica empurrando rapidamente uma bandeja prateada com uma louça adornada com flores e pão fresquinho e quente com uma garrafa de água até transpirando de tão fria.

Judith voou até a abertura desesperada para pegar o alimento e a água antes que algum sádico pudesse fechar aquilo para se divertir com o sofrimento dela, no que algo pior aconteceu: outra abertura se fez na parede logo acima da onde estava a bandeja e o que parecia uma enorme tela preta com umas cinquenta polegadas apareceu e então, ela ligou sozinha uma robô de aparência feminina, sem cabelo, dando para ver o couro cheio de fios e apliques eletrônicos, mas com rosto com pele sintética e expressão bem humanas, apareceu.

-Olá, Judith. Até que enfim você expressou algo que queria. Estamos aqui para melhor servi-la.

-Melhor me servir, como? Vocês me prenderam, não é mesmo? Não sabem que sequestro é crime? Pois eu já tive um namorado advogado que poderá dar um jeito contra vocês! – Judith ameaçou com raiva, largando o pão sem nem mexer porque ficou em choque com a robô falando com ela.

-Por que a senhorita está reagindo assim? Foi a própria senhorita que assinou o contrato de serviço voluntário para o Projeto Vida com Mais Energia, da nossa empresa Amperex.

E para comprovar, a robô apresentou na tela imagens das câmeras do local e de seu arquivo de Judith sentada numa outra sala branca, mas dessa vez assinando mesmo um calhamaço de folhas e com cara de quem estava fechando um belo negócio.

-E por que não me lembro de nada disso? – perguntou desconfiada.

-Isso é um efeito colateral em que estamos ainda trabalhando para resolver no implante que colocamos nas têmporas dos voluntários para podermos medir as frequências cerebrais durante o experimento.

-E quanto tempo esse “Projeto” vai durar? -Judith indagou, notando que de fato havia algumas peças parecendo a cabeça de parafusos logo acima de suas orelhas, mas que não doíam.

-Achamos que o tempo não é importante para você por causa da maneira que você tem levado a sua vida.

Judith ficou pasma com a resposta, não que ela estivesse com uma agenda muito lotada mas…

-Como assim “da maneira que você tem levado a sua vida”? O que quer dizer?

-Você tem se sentido sempre presa, sufocada e saturada com todos os empregos que tem arrumado e saído, ou mesmo com todos os relacionamentos em que tem entrado e acabado. Fizemos pesquisa em seu cérebro, porque a própria senhorita assinou essa permissão, e vimos que é a voluntária ideal pois procuramos para nosso Projeto Vida com mais Energia pessoas que realmente não gostam de suas vidas e a senhorita excedeu nossas expectativas já que de todos os voluntários participantes é a mais insatisfeita.

-E ser mais ferrada que os outros é vantagem agora? – Judith achou aquilo um absurdo, porém, por dentro sabia que até a robô tinha razão: estava completamente perdida na vida, colecionando uma série de demissões e surras em seu coração quebrado, moído e destroçado. A rave fora apenas um subterfúgio que estava tentando usar para esquecer do emaranhado de problemas que estava a sua vida.

-E no que ficar presa aqui vai ajudar no Projeto de vocês? – perguntou ela com desdém.

-Presa em sua vida e amarrada a senhorita já estava. Aqui pelo menos sua prisão será útil para analisarmos quanto de energia a senhorita vai precisar até o Momento X.

E sem mais nem menos, a robô parou de falar e a tela voltou a ficar preta.

Então ela viu que não precisava de muito para deduzir que esse Momento X poderia ser qualquer coisa: quanto tempo ela levaria para surtar de vez lá dentro e acabar morrendo para ver se assim se livraria daquela estranha prisão, ou mesmo poderia ser quanto de energia ela consumiria lá dentro enquanto estivesse presa e talvez fizessem testes ainda mais difíceis cortando até mesmo a luz caso achassem que ela gastou demais, porque logicamente não conseguiria dormir tranquila naquele ambiente e ficaria acordada pensando sobre como sair de lá, porque viu que o negócio era bem mais difícil do que pensava.

-Por que fui me interessar por aquele cara?Até mesmo trabalhar no telemarketing estava melhor do que aqui. Pelo menos na minha marmitex vinha carne…- lamentou-se ela certo dia, depois de sabe-se lá se já fazia uma semana inteira ali, a pão e água apenas.

Judith sabia também que pelo menos três vezes por dia passavam uma espécie de flash de luz verde por todo o quarto dela, e talvez aquilo fosse para medir a tal da energia dela.

Então, enfim lembrou-se que a robô logo que se apresentou disse que ela só precisava expressar o que queria, que eles estavam ali para servi-la, e decidiu acreditar e chamou pela robô:

-Ei, dona robô ou dona IA!

E a parede novamente se abriu e a mesma robô simpática apareceu.

-Pois sim, Judith.

-Eu quero expressar algo que quero: eu quero sair daqui.

-Tem certeza, senhorita? – questionou a robô sem se impressionar.

-Sim, sem dúvida. – Judith estava tentando ser firme e convicta, mas se desse certo iria ficar se insultando muito por ter passado tanto perrengue à toa e por ter demorado pensar em uma solução.

-E por que a senhora não quer continuar dentro do Projeto?

-Por que embora vocês aí achem que eu vivia mal minha vida, que eu estava no fundo do poço, perdida e arruinada, pelo menos eu podia sair andar, ver gente, podia comer mais do que só pão e água, e mesmo apreensiva sobre o que eu ia fazer de minha vida e futuro, mesmo estressada atrás de um emprego, ainda assim, era minha vida. E eu percebi que até estar naquela situação ainda é melhor do que estar aqui. E nem precisam se preocupar em me pagar, eu só quero desistir, então solicito que providenciem minha saída desse Projeto.

-Sim, senhorita. – E Judith notou que as coisas eram mais simples do que tinha imaginado.

A porta se abriu e havia uma enorme equipe de cientistas do lado de fora, inclusive o rapaz loiro, vestido com um terno profissional e estava elegante, porém, ela tinha sofrido tanto nervosismo ali dentro que nem sentia mais nada por ele, mesmo ele vindo felicitá-la:

-Parabéns, Judith! Você chegou no Momento X que é o instante onde o ser humano chega no pico de energia cerebral para tomar uma decisão que vai mudar seu futuro.

Judith fez cara de quem não entendeu.

-Simples, querida: a Amperex é uma startup que está desenvolvendo pesquisas e projetos na área da biologia humana e da energia verde e estamos procurando voluntários dispostos a permitir que estudemos a emissão de energia do corpo e do cérebro para tomar cada tipo de decisão, e para aproveitarmos melhor isso em implantes no futuro que faça com que as pessoas produzam mais, mas sem sofrer tanto desgaste mental. Aliás sua participação foi muito importante e aqui está seu cheque.

E quando Judith viu o valor, percebeu que de fato não teria desgaste mental por muitos anos.

Em seguida, despediu-se até com medo de ser agarrada e aprisionada de novo e saiu da empresa; agora sim satisfeita, contudo, talvez muito mais por enfim perceber que apesar de todas as preocupações, nada é melhor do que ser livre novamente.

Por Gisele Portes

Deixe uma resposta