
Lucas lutava para aceitar que ficaria ainda mais diferente após sair da mesa de cirurgia. Estava participando como voluntário num novo projeto misto de medicina, engenharia e biologia e tinha chegado a fase de finalmente substituir os ossos de seu abdômen por ossos cibernéticos feitos de grafeno e que seriam ligados à sua medula óssea – ou pelo menos ao que restou dela depois de um terrível acidente no qual seu carro tinha se chocado contra um caminhão carregando vigas e uma escapou das amarras e acertou em cheio seu abdômen, esmagando-o contra o banco.
Só tinha sobrevivido por causa de um sofisticado tratamento de ressuscitar seu cérebro e fazer com que ele voltasse a trabalhar em conjunto com seus órgãos também substituídos por outros feitos de nanorrobôs e células tronco.
Como seu tratamento foi dividido em duas etapas e essa primeira já tinha sido um sucesso porque estava vivo, era frequente seu aparecimento na TV como uma espécie quase de garoto-propaganda dessa medicina cibernética que estava salvando pessoas de acidentes trágicos e revolucionando o que antes seriam dados como casos perdidos e óbitos.
Mas toda essa notoriedade e ter virado praticamente uma celebridade devido ao seu acidente só fizeram acentuar ainda mais a sensação que já tinha de se sentir um peixe fora da água.
A vida toda passara sofrendo com bullyings na escola por causa de não conseguir ser igual aos outros alunos por ter lúpus e também uma inteligência muito acima da média que lhe dificultava conseguir fazer amigos sinceros, porque se não se assustavam com sua aparência, incomodavam-se com suas conversas profundas e interesses que a maioria das pessoas não entendia.
Pelo menos foi justamente por ser autodidata e superdotado que conseguiu abrir uma grande empresa que não demorou muito para virar uma transnacional no ramo de logística com big data para controle e rastreio de produtos na área varejista.
Isso também proporcionou-lhe o dinheiro para agora estar suportando a todos os processos de recuperação que envolvia fisioterapia e alimentação caríssimas, porém, o maior inconveniente para ele era ter que ouvir as terapeutas notando sua solidão e perguntando direto se ele não tinha namorada, esposa, parentes próximos ou amigos que pudessem acompanhá-lo nesse momento tão delicado e tudo que tinha na verdade era uma companheira robô que estava justamente programada para ajudá-lo igual a uma companhia humana – pelo menos é o que a embalagem dizia.
-O abismo entre mim e os outros é muito grande, Eudora – falou Lucas para a robô loira, de pele sintética, maquiada, bem vestida e que se movia e falava tão bem que passaria perfeitamente por uma namorada extremamente linda, sentada ao lado de sua cama após a cirurgia.
-Por que você se empenhou em se aperfeiçoar, querido. Para as pessoas que não quiseram estudar e se aprimorar só restou ficar na marginalidade ou escravidão. – Eudora acariciou o ego dele, mas ele sabia que isso não resolvia seu dilema.
-Não… o problema não é só esse. A impressão que eu tenho é que quanto mais eu vivo, mais que eu me torno diferente de outras pessoas e isso só faz eu me sentir ainda mais distante. Parece até que sou de outro planeta pela forma que as pessoas me olham como se eu fosse totalmente estranho. – Ele a fitava procurando algum consolo naquele cérebro de inteligência artificial, que era justamente para ser ainda mais inteligente que o dele (e foi por isso que ele a tinha comprado: para ver se com ela, ele acharia alguma compreensão.)
-Você ainda é muito jovem, só tem trinta anos e já é um magnata que revolucionou o setor de logística. Gênios não são iguais a todo mundo mesmo. – Já ela o olhava com candura e fazia carinho em sua testa enrugada de tanto se preocupar. Só com Eudora ele poderia realmente abrir seu coração e ser sincero; enquanto que diante de todo o batalhão de homens que trabalhavam ou serviam a ele, tinha sempre que manter a pose de ser lúcido, de decisões precisas e de pulso firme e ninguém poderia saber de suas fraquezas. Percebia que o próprio dinheiro também tinha lhe ajudado a não ter mais que ouvir ofensas sobre sua aparência – mas não garantia que não falassem pelas suas costas.
-Sabe por que eu me empenhei tanto para vencer nesse mundo? – perguntou Lucas sério para Eudora que levantou as sobrancelhas numa perfeita expressão de interesse genuíno. – Porque pensei que o dinheiro compraria a consideração das pessoas e que elas iriam gostar de mim por verem que eu tenho outras qualidades e não só meus problemas físicos.
-Ora, mas o que você tem não é um problema físico, é uma condição de saúde apenas. E os remédios já removeram suas manchas e devolveram a você uma vida praticamente normal – Eudora tentou apoiá-lo.
-Não é bem assim… as manchas em minha alma de tudo que passei continuam vivas em minha memória – Lucas estava começando a ficar com a voz chorosa, pois eram profundas suas dores emocionais até mais do que as de seu corpo recém-operado.
Os olhos de Eudora se perderam no vazio, e ele sabia que ela estava consultando a big data para achar a resposta mais conveniente para ele.
-Lá em Los Angeles existem já cirurgias para deletar do cérebro todas as memórias ruins. Você pode fazer isto ou… – aconselhou Eudora, mas pausou porque apesar de conhecer o comportamento e respostas esperadas dele, não queria ser brusca. E ao observar o rosto dele querendo que prosseguisse, foi o que fez com um sorriso doce. – …ou usar suas dores para ajudar as pessoas.
Com dificuldades para se erguer porque os ossos novos do peito ainda estavam se adaptando com suas veias e ligamentos e os ossos de antes que ainda sobraram, mesmo assim ele até tentou se sentar para lidar com a saída impressionante que Eudora apresentou-lhe.
-Você está falando para eu virar um coach? – Lucas indagou, pasmo.
-E por que não, Lucas? – animou-o Eudora, que não precisava chamá-lo de “senhor” porque ele tirara isso de sua programação por querer uma proximidade mais real. – Ao invés de ficar sofrendo por causa de ser diferente ainda mais agora que você vai virar um ciborgue, aproveite essa oportunidade e use os canais que estão querendo falar com você para também convidar as pessoas a irem em suas palestras, pois não tem ninguém que pelo menos eu tenha achado na big data até agora que tenha passado por tantas dificuldades ou sofrido por ter sido sempre tão diferente dos outros.
“Você conhece profundamente as dores de não ser compreendido, de despertar nas pessoas o medo do estranho e do desconhecido, tanto que fez mesmo o mundo mudar para muito melhor, facilitando a vida das pessoas. Mas ainda não é o suficiente porque por mais cabos, órgãos positrônicos e máquinas coloquem em você, você continua tendo um coração imensamente humano e você quer se unir com humanos mais do que tudo, então se você falar com as pessoas como fala comigo, elas serão tocadas e você se sentirá bem.”
Lucas ficou ouvindo a voz suave e amigável de Eudora com perplexa atenção.
Voltou a olhar pela janela do seu quarto no hospital de San Diego, e sentia como se tivesse tendo uma epifania pois sua mente se encheu de imagens de como seria emocionante se tudo aquilo que Eudora estava esboçando na frente dele fosse possível.
“E se sou eu que tenho medo das pessoas, achando que todas vão ser cruéis comigo só porque algumas foram no passado, e eu só preciso na verdade falar honestamente e não ser tão duro e não ficar tanto na defensiva? E se realmente houver pessoas que querem me ouvir, e eu apenas me mantive frio e afastado, mas na verdade, eu também nunca mais deixei ninguém conhecer meus sentimentos?”
Depois de refletir bastante, Lucas falou com um sorriso destruindo sua expressão pesada e triste e iluminando até o rosto de Eudora, cheio de esperanças:
-Você é que deveria ser coach, menina!
-Mas foi você quem me programou assim. Sua essência também está em meu código e sou apenas um reflexo seu. – E Lucas sabia que era verdade porque logo após a compra o proprietário desses robôs podia inserir qualquer comportamento, linha de diálogo e ideias que quisesse e ele programou alguém compreensivo, cheio de compaixão e que não julgasse e criticasse porque ele mesmo era assim por dentro. Mesmo que tivesse conhecido tantas pessoas que infelizmente endureceram seu coração, mas agora ele estava disposto a levar para frente os conselhos de Eudora, logo após que terminasse sua fase de reabilitação e pudesse abrir as primeiras palestras.
Passaram então o resto daquela tarde no hospital e até mesmo os próximos dias nos quais Lucas tinha fisioterapia planejando como ajudar outras pessoas a não ficarem tristes por causa do que outros tachavam maldosamente como “ser diferente”, e sim, motivando-as para transformar isso em qualidades especiais e virtudes úteis.
Por fim e para iniciar as palestras no dia seguinte que já estavam com todos os ingressos esgotados, criaram o nome desse novo projeto: Amada Coisinha Estranha.
Por Gisele Portes