Desastre Imaginado

Finalmente tinha chegado o grande dia para Jorge de trabalhar em um renomado instituto de física e de poder provar suas capacidades e que tinha razão, dando um basta na imagem que formaram dele de distraído e de relapso com os estudos, quando na verdade o que chamava sua atenção eram questões futuras que a sociedade enfrentaria e que ela própria ainda perdia tempo em ficar o criticando ao invés de se preparar e sem nunca lhe dar uma chance para explicar suas apreensões.

-Eu não sou distraído. Eu apenas vejo coisas que outras pessoas não estão percebendo e quero entendê-las tanto que acabo me esquecendo da realidade porque ela é ruim mesmo e vai ficar pior se nada for feito – falava Jorge sozinho, cheio de ressentimentos ainda o perturbando, e não tinha ninguém que pudesse ouvi-lo de qualquer forma, enquanto caminhava até o instituto para seu primeiro dia de trabalho como físico e programador.

Mas agora poderia encontrar pessoas que viam as coisas como ele via, porque após muito esforço e de luta contra a tristeza de não ser compreendido para priorizar mais os estudos e seu aperfeiçoamento, tinha conseguido ser contratado pelo instituto de física do Rio Grande do Sul, Dr. Antônio Sanches Annenberg, e logo que chegou no prédio muito branco com janelas imensas foi recebido pelo cientista-chefe, o senhor André Tarnowski.

-Seja bem-vindo, Jorge! – cumprimentou-o André, com um aperto de mão generoso. – Todos nós da equipe estamos contentes por você estar se juntando a nós hoje. – Então André o levou até uma mesa ampla de madeira com mais um cientista trabalhando em vários notebooks e muitos projetos desenhados em tablets ligados e espalhados pela mesa.

-Olá, Jorge, finalmente chegou o homem da matéria programável! – saudou-o o rapaz se apresentando como Thiago Mendonça.

Jorge logo percebeu que ali estavam pessoas que tinham enfim entendido seus estudos sobre o que realmente ele observava: o quanto que a matéria poderia ser manipulada de formas muito mais interessantes e profundas do que já tinha sido feitas, podendo ser modificada mais do que a própria metalurgia, engenharia computacional, física e química já tinham feito até lá.

Sua tese tinha percorrido o mundo ano passado graças à uma publicação em uma grande revista científica; e após muitos anos de estudo trancado e sozinho só com teorias e sem meios para pôr nada em prática, ele estava muito ansioso e cheio de vontade para trabalhar naquela equipe de cientistas que conduziam um projeto nacional para a implantação de matéria programável na indústria da engenharia civil visando resolver os problemas da falta crescente de material básico após o aumento de catástrofes causadas pelas mudanças climáticas.

Logo ele se sentou de frente para Thiago que lhe virou um notebook para ele poder navegar pelos estudos prévios já feitos por aquele equipe que contava com mais de trezentos membros em outros estados, trabalhando remotamente.

Então ele começou a ouvir as explicações do André e foi percebendo o quanto que valeu a pena ter pagado o preço para chegar até lá.

-…e é justamente por isso que contratamos você, Jorge. Todo mundo aqui já passou estresse o suficiente, nervosismo, e principalmente muita raiva com a quantidade de vezes que nos aproximamos e chegamos perto de fazer nossa própria matéria programável funcionar e ela não conseguiu virar nenhum objeto, infelizmente.

-Ela não conseguiu se manter estável e nem ficou do tamanho e na forma de um pequeno dado na fase de teste, e já se espalhou toda pela mesa – relatou Thiago, deixando-o a par da situação, com voz de lamento.

-Sem contar que apesar do que você mesmo deve ter ouvido por aí, nem tudo é só glória na ciência, e muito menos aqui no nosso centro de pesquisa e desenvolvimento. Estamos há mais de um ano trabalhando nesse projeto e o governo já nos ameaçou várias vezes de parar de nos financiar, mesmo eu fazendo apelos, pressão e até implorei por um pouco mais de tempo, pois sei que já estouramos o prazo da entrega, só que estou vendo que logo ficaremos por nossa própria sorte e tendo que conduzir nossas pesquisas com nosso próprio bolso – revelou André com sinceridade e aproveitou para se abrir um pouco mais para o novo colega e membro: – E não é um estresse normal apenas porque o projeto é mais complicado do que esperávamos, mas também nos angustiamos muito em ver a situação das pessoas nas ruas sofrendo com os últimos problemas de terremotos, com suas casas destruídas e sem material e recursos o suficiente para reconstruir suas vidas.

-Vimos sua tese e artigos sobre a linguagem nova de programação que você criou a Imaginatech ou IMGTC e como ela conseguiu resolver várias lacunas e falhas da que estamos usando agora e ficamos animados por saber que, em teoria, ela poderia fazer enfim nossa matéria funcionar e responder melhor e por isso que queremos lhe dar a chance de fazer testes práticos usando a IMGTC – concluiu Thiago, olhando-o com esperança.

-Entendi, mas pelos meus estudos, sem dúvida, a IMGTC fará a matéria programável fazer muito mais do que simplesmente obedecer aos comandos exigidos. Vai ser futuramente a maneira que os humanos vão ter para tornar real toda a sua imaginação.

E os dois cientistas arregalaram os olhos enquanto que Jorge mostrava no seu notebook o site na nuvem onde guardara seus estudos e contou para eles como que logo a matéria programável poderia fazer qualquer coisa que um operador quisesse, desde utensílios pequenos a prédios gigantescos.

-Como eu lhes disse, vai ser possível tornar real qualquer imaginação e vai ser a própria pessoa que vai determinar o limite do que ela realmente quer criar.

Admirados, os dois cientistas trouxeram para ele dentro de uma espécie de aquário com ambiente controlado por dispositivos regulando a temperatura e pressão uma substância volumosa parecendo um barro semieletrônico com nanorrobôs ainda bruto de matéria programável e Jorge, com a mesma empolgação de um escultor que vê pela primeira vez argila virgem para esculpir, acoplou a caixa em seu notebook e começou a correr os dedos pelo teclado diante dos olhares curiosos dos cientistas.

Em poucos minutos a matéria que mais parecia uma geleia preta foi se aglutinando e tomando forma; e Jorge ainda respeitou o tamanho da caixa, mas gostou de ver a expressão chocada dos dois ao fazer miniaturas paradas de carros, bicicletas e até casas com ela e ao avisar que aquilo tudo poderia ter seus tamanhos naturais próprios e sair rodando ou servir de moradia também, acrescentando que ele só não fez isso, para não estourar a caixa deles.

Após muitas risadas de admiração, ele finalmente sentiu seu coração aquecido por ter encontrado pessoas que queriam dar crédito à inteligência e criatividade dele.(E era bom saber que poderia esquecer as mágoas e o tempo que gastou no passado criando teorias e estudos e sem ter ninguém que se importasse porque não entendiam o quanto que aquilo era importante, enquanto que ele já sentia que a civilização entraria em um problema grave por causa da falta de matéria-prima em 2557, após tantos anos de extração e produção impensada de gerações passadas, e justamente as pessoas que mais riram de suas ideias quando era criança e adolescente, agora viviam atribuladas sem encontrar muitas das coisas que precisavam, tendo que improvisar -isso se não cometiam atos ilícitos. Enfim, não eram tempos fáceis e ele estava afim de fazer o possível para ajudar e adorou ouvir que teria carta branca para trabalhar ali.)

A linguagem desenvolvida por Jorge realmente facilitou em muito a resposta da matéria programável e os cientistas comemoraram, depois do final do dia, as boas expectativas de enfim terem algo realmente concreto para apresentar ao governo e ainda manter os investimentos.

Logo, toda a Rio Grande do Sul já estava reestruturada após intensos terremotos e enchentes nos últimos dez anos com a matéria programada desenvolvida no instituto de Jorge.

E certa tarde ele enfim pôde se sentar no alto de um prédio reconstruído com sua matéria por ele mesmo com apoio de engenheiros, e ficou olhando para a cidade moderna e recuperada que se erguia, com seu olhar perdido e sem ser criticado ou chamado de distraído, porque foi graças à sua imaginação que agora muitas pessoas estariam protegidas de novos desastres e desfrutando de lares e estabelecimentos muito mais fortes.

-A vida realmente é irônica… Tanto que tentaram me destruir com palavras pesadas, tentando me fazer desistir e agora eu, usando minha linguagem e imaginação, estou reconstruindo o mundo deles – ele riu para si mesmo, satisfeito com seu trabalho e sentindo-se feliz por não ter desistido quando parecia que ninguém o compreendia. Às vezes as pessoas apenas não entendem o quanto precisam de nós.

Por Gisele Portes

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