
Sônia não podia acreditar ao olhar para os documentos que o RH da prefeitura tinha acabado de lhe entregar, constatando que estava demitida de seu emprego de enfermeira do hospital municipal.
Mas não podia também negar para si mesma que tinha visto isso anteriormente na carta de seu tarot daquela manhã – com uma triste carta “XII – O Enforcado” lhe aparecendo – porque tinha costume de todo dia pela manhã antes de tomar café e de pegar o ônibus para o serviço, investigar o que o dia lhe reservava na esperança de tomar decisões melhores, já que estava cansada de tentar mudar de vida e nada conseguir.
Não tinha sido a primeira vez em que tirara uma carta ruim; há menos de um mês tinha tirado as cartas do Sol e do três de espadas, e não demorou nada para sua mãe morrer de enfarte fulminante e ela pouco pôde fazer mesmo sendo enfermeira.
A vida de Sônia parecia ir de mal a pior e buscar respostas além do cotidiano começou a parecer uma boa saída, ainda mais depois de muito por acaso, em um dia, enquanto ia esperar o ônibus para ir para o serviço, ter encontrado uma moça com um lindo vestido preto com flores delicadas vermelhas, arrumando um baralho. E foi só se sentar ao lado dela, que a moça começou a falar que ela estava com a aura carregada e a ponto de ruptura, pois tinha muita energia acumulada e não estava usando de forma adequada.
Sônia estranhou aquele princípio inusitado de conversa, misturado com um diagnóstico que lhe escapava do raciocínio de como que ela conseguiu saber que ela estava passando por um momento difícil, já que tinha acabado de ver pelo seu celular que tomou bomba em mais um concurso e pensava consigo mesma o quanto que só patinava na vida, com as dívidas só aumentando.
-Você só vai mudar de vida quando aceitar o que sua voz interior está dizendo. E você sabe bem o que ela quer de você – afirmou a moça misteriosa, com um olhar verde que parecia atravessar a alma de Sônia mais do que raio X.
-Quem você pensa que é para falar assim de mim? Você nem sequer me conhece – defendeu-se Sônia, pondo sua bolsa mais para debaixo de seu braço, com medo de que aquela mulher estivesse alcoolizada e com más intenções.
-Talvez não nos conheçamos por meio de conversas e encontros físicos ainda, mas só estou falando tudo que você está vibrando aí em sua aura, pois parece um outdoor gigante piscando com mensagens de “Eu sou um fracasso”; “Eu não consigo fazer nada que eu quero”; “Por que para mim tudo é tão difícil?”, e mais um monte de outras reclamações… – explicou-lhe a moça, e Sônia se sentiu ainda mais invadida e irritou-se.
-Olha, guarde suas deduções, previsões ou o que quer que seja para você mesma e me deixe em paz, por favor – Sônia manteve-se na defensiva e nem podia ir para o outro ponto que o ônibus iria passar também, porque em menos de cinco minutos ele estaria lá e ela não teria tempo de andar até a próxima parada. Para seu azar, só começava a chegar mais gente ali meia hora depois, pois ainda era muito cedo e estava sozinha – coisa que nas outras manhãs não era um problema, a não ser por naquele dia ter aquela louca ali sentada.
-Se eu lhe falar meu nome, talvez você se acalme. Eu me chamo Esmeralda e não precisa ter medo de mim, já que eu já vejo em você um medo tão forte contra si mesma e você só vai se desgastar, querida. – Esmeralda lhe falava com voz gentil, mas isso não suavizava em nada a situação absurda e desconfortável ali de ser analisada daquele jeito e não saber nada sobre a outra. – Você continua desconfiada… deve ser escorpiana – suspeitou Esmeralda a olhando atentamente, tentando pegar traços de sua personalidade. – Pois bem, eu sou uma taróloga, astróloga e também sou médium. Eu sou de Minas Gerais, de São João Del Rei, e estou aqui para visitar minha avó. Trabalho nessas áreas há mais de dez anos e se você tiver internet aí no seu celular, pode ver que tenho um canal com três milhões e meio de inscritos, no qual ensino as artes que conheço.
Sônia acabou não conseguindo evitar o interesse por aquela apresentação e acessou o canal de Esmeralda, surpreendendo-se com como ela era bem conhecida até.
-Mesmo assim você pega ônibus? – Sônia perguntou sem entender como que ela poderia estar ali, num lugar tão simples.
-Eu gosto de levar uma vida pacata e sem ostentação. E você, que tipo de vida gosta de levar? – Esmeralda enviou-lhe agora uma pergunta ainda mais cortante do que quando falava de forma indireta.
Sônia ficou em silêncio e sem saber o que responder. “Minha vida está uma bagunça e eu tenho vergonha de como as coisas estão”, ela gostaria de falar, mas nem mesmo o fato de a outra mulher ser perfeitamente desconhecida e poder talvez testar o alívio de se abrir para uma perfeita estranha sem medo de ser depois julgada, parecia ser uma opção convidativa.
-Não está boa. Não é, querida? – Esmeralda já tinha entendido tudo novamente. – Mas enquanto você tentar se encaixar com as coisas normais do mundo e com o que as pessoas lhe impõem, você continuará vivendo essa bagunça toda aí. Você está traindo e desprezando seus talentos especiais toda vez que sai pela manhã para viver uma vida que não tem nada a ver com o que seu coração quer de verdade.
Sônia continuava de pé e sentia suas pernas tremendo ora de raiva, ora de medo.
-Eu já disse para você parar de me importunar, senão vou chamar a polícia! – ela ameaçou, quase chacoalhando o celular na cara da outra.
-Seu coração é quem grita alto pedindo para que eu lhe ajude e é por isso que eu nem preciso abrir as cartas para você, nem desenhar seu mapa para ver o estado horrível em que você está. Você não está com medo de mim, mas de enfrentar esse momento que é o de ficar frente a frente com você mesma e de ver o quanto que precisa se ajudar e parar de ter medo de si mesma. Deixe essa insegurança de lado e se entregue a quem você realmente é.
Esmeralda ficou em silêncio em seguida e apontou com a cabeça para o ônibus de Sônia que vinha reto, descendo a avenida até o ponto de parada, e ela nem estava atenta para dar sinal e ele parar. Também pudera: sentia-se nocauteada pelas palavras da estranha moça.
Seu estômago revirava diante da vontade de continuar ali com ela e conversando mais. Nunca tinha encontrado uma pessoa tão lúcida e com aquele nível profundo de conversa. Passou o cartão e foi se sentar ainda trêmula e sem opção, vendo a mulher que continuava sentada no banco e voltando a arrumar o baralho dela.
Depois que chegou ao serviço no hospital, fez tudo mecanicamente: bateu o ponto, arrumou-se pondo as roupas de enfermeira e foi para a área de preparo de medicações; porém, sua cabeça não comandava nenhum de seus movimentos, tamanho seu estado ainda de choque. As palavras de Esmeralda lhe martelavam a mente sem parar.
Levou a bandeja com remédios que precisava distribuir para os pacientes para a UTI, e foi então que se impressionou mesmo, porque foi bem na hora em que pelo menos dois pacientes estavam com bips em seus leitos, indicando parada cardíaca e pelo impulso da profissão, tentou focar e passou a fazer os protocolos, contudo, ela, outros enfermeiros e os médicos não tinham muito mais o que fazer, e se já não bastasse isso, ela pôde novamente ver perfeitamente as almas dos dois velhinhos saindo de seus corpos e subindo até desaparecem no teto branco.
Não era a primeira vez – aliás, sempre via – e em toda ocasião ficava arrepiada.
Depois foi dar um suporte (e não eram também raras as vezes nas quais fazia isso, pois com freqüência era chamada pelos parentes dos falecidos), logo depois dos médicos cumprirem com suas funções e informarem sobre a partida daqueles dois senhores para suas respectivas famílias algum tempo mais tarde naquele dia.
Assim notou que mesmo que naquela manhã tivesse julgado Esmeralda, enfim caiu sua ficha de que o que os parentes mais gostavam era do seu jeito de falar de uma forma que parecia ler também a alma de cada pessoa na sua frente; conseguindo consolar de uma forma muito profunda e poder fazer isso sempre a deixava se sentindo muito mais útil e com a sensação de que podia ajudar muito mais, embora, sempre fosse chamada à atenção por ficar de muita conversa com os parentes dos falecidos e por demorar retornar para seu serviço – coisas que motivaram a sua demissão – além de que, depois que conheceu Esmeralda, nunca mais conseguiu chegar na hora em seu trabalho, até porque se envolvera fundo com o estudo de tarot e a prática nem que fosse consigo mesma.
Então, logo que saiu do hospital e estava na praça ainda pensando no que faria da vida e com a documentação da demissão ali em suas mãos ainda, percebeu que aquilo poderia simbolizar que finalmente não estava mais enforcada e que tinha achado a chave para sua verdadeira liberdade, porque agora nada e nem chefia arrogante nenhuma lhe impedia de aproveitar que tinha o contato de todas aquelas pessoas e começar a oferecê-las um serviço pelo qual já era conhecida – o de ouvi-las – além de adicionar enfim suas habilidades mediúnicas e ver no que ia dar.
Afinal não tinha mais nenhuma das amarras que a prendia que eram a responsabilidade com um trabalho para poder tratar de uma mãe doente e ainda que dívidas de aluguel pudessem persegui-la, não precisava de muito investimento para adaptar a sala de sua casa e começara receber pessoas interessadas em suas consultas.
E em pouco tempo estabeleceu mais do que uma clientela, mas também uma confiança enorme em perceber que de fato não era que a vida era ruim, mas sim, que seus medos e inseguranças de ser si mesma e de deixar fluir naturalmente seus dons, era o que mais empacava sua vida de progredir e conforme ia crescendo em sua nova área, percebeu que enfim tinha tomado uma decisão certeira por ter decidido se permitir ser quem realmente era e curtir a liberdade de deixar para lá as regras e o falatório malicioso do mundo.
Inclusive, quando já tinha se tornado uma taróloga tão pop nas redes sociais quanto Esmeralda, não deixou de aproveitar a situação e que a carta da manhã pedia para ela demonstrar mais gratidão e foi no perfil da Esmeralda, deixando um convite para formarem uma parceria e as duas uniram seus brilhos como estrelas irmãs, iluminando todos aqueles que precisavam sair das sombras das angústias e dos entraves da vida para também verem seus verdadeiros poderes.
Por Gisele Portes