
Estou tentando ser sensata, não quero deixar que o medo se aposse de mim logo na minha primeira semana de trabalho como médica legista aqui nesse necrotério, mas a conversa que eu acabei de ter com a doutora Cleide na troca de nossos turnos ainda me causa calafrios incômodos.
-É uma pena que você comece sua primeira semana já à noite. Geralmente, eles deixam para o pessoal mais experiente – Cleide tinha me falado com pena, já vestida para ir embora e terminando de guardar seu jaleco para o dia seguinte.
-Mas eu já trabalhei em outro necrotério lá em Minas, e não faz diferença estar aqui agora em São Paulo – respondi para ela, desconfiando que estivesse duvidando de minha capacidade de me adaptar apesar de ela ter visto meu currículo.
-Ah, mas faz diferença sim: este necrotério aqui não é igual a nenhum outro, e logo você vai ver. São barulhos estranhos nas gavetas dos armários com os corpos, vozes, passos pelo corredor, luzes falhando…
Eu, que estava pensando que ela ia censurar meu jeito de trabalhar ou deixar algum comentário ácido para dizer que eu não aguentaria o turno cansativo da noite, fiquei chocada com uma médica falando de superstições daquele tipo (embora eu escondesse de todos minhas próprias experiências paranormais para evitar justamente ser julgada; e agora é que notei como eu tinha sido intransigente com ela, coitada.)
O mais estranho é que o tom sério e frio dela e talvez o fato de já a ter conhecido um pouco desde que cheguei semana passada aqui no necrotério, realmente estão me fazendo segurar essa conversa em minha mente mais do que eu desejo. Preciso arquivar meus relatórios de atestados de óbitos ainda do turno passado, e faço força para manter meu autocontrole, pois há muito trabalho para eu fazer até às seis da manhã, quando meu turno acaba e entra o doutor Celso Monteiro, que é nosso chefe e não quero me distrair com bobagens.
Quando são duas e quinze da manhã, finalmente termino de preencher os cadastros no computador e preciso descer para a sala onde chegam os corpos do dia para que eu examine e também os registre.
À esta hora, só há dois guardas por toda a instalação, mas nunca fui de me sentir nervosa com meu trabalho que amo muito e também é bom saber que as instalações estão protegidas.
Puxo a gaveta e na maca de metal do primeiro corpo que preciso fazer a autópsia e tiro o lençol de cima e vejo um corpo de moço que me congela até os ossos imediatamente e toda a minha tentativa de me manter lúcida e profissional vai para o ralo:
-To-Tobias… – balbucio, com as mãos com luvas em meu rosto chocado, sem nem notar que eu não devo fazer esse gesto. Sinto-me como se meu coração tivesse parado de bater com o choque: meu ex-namorado está ali, morto na minha frente, com a pele já bem pálida, lábios roxos, mas ainda com seus traços praticamente perfeitos.
Sei que estou sozinha, e não resisto e mesmo com as mãos cobertas por luvas caio na tentação de alisar aquele cabelo castanho escuro lindo, curto nas laterais, mas com volume no topo da cabeça, e percorro meu dedo ao redor de seu maxilar forte, com barba morena por fazer e então apoio minhas mãos no metal ao lado da maca sem acreditar agora que enquanto eu estava vendo ainda seu peitoral e braços fortes, de repente, em uma piscada minha, o corpo perdeu toda a carne e características próprias para virar um esqueleto, uma simples ossada.
-Não… não é possível – meus olhos se enchem de lágrimas, sem que eu espere e minha respiração está entrecortada, com minhas pernas bambas. Não consigo entender o que está acontecendo.
-Calma, Regina. Eu só queria que você soubesse que sou eu aí, mas já faz tempo que eu parti – ouço a voz do Tobias e ao mesmo tempo uma sensação fria em meu ombro e quando olho para a direção da porta, ao meu lado está Tobias de pé me olhando, mas aquele tom tão lindo de pele morena bronzeada que ele tinha está trocado por um tom azulado fantasmagórico, e assustada, recuo ao ponto de bater no armário de corpos. Tenho um bisturi próximo de minha mão esquerda e aponto para ele – reação tão automática, que eu me espanto comigo mesma, porque apesar do que aconteceu no fim de nosso relacionamento (e que eu ainda não consegui superar, meses depois), eu jamais faria algum mal contra ele. Acontece que eu não sei dizer ainda se é o Tobias mesmo; tudo que sei é que era para ele estar morto após um grave acidente na Rodovia Fernão Dias quando seu carro colidiu com um caminhão.
Só que eu só fui ficar sabendo da morte dele através de como a família tinha preenchido a página dele com depoimentos e frases lamentando por sua morte, e eu, que esperava me alimentar ainda da esperança de ver seu rosto feliz e fazendo de tudo para não ver a foto dele com a outra que ele arrumou, a Patrícia ainda assim, lembro do quanto que eu fiquei arrasada naquele dia, há mais de seis meses.
-E estou aqui agora justamente para falar sobre tempo com você. Vi que cometi um grande erro em terminar com você e que só perdi tempo com a Patrícia, quando na verdade, deveria ter ficado com você.
Ok, eu realmente esperei ouvir isso de Tobias, logo depois que ele não aceitou bem minha mudança para São Paulo e não acreditou num relacionamento à distância e quis me deixar pela moça que trabalhava com ele na ocasião na agência bancária.
Quis muito ouvir isso que ele está me falando agora, e com certeza eu não demoraria nada para dizer que eu não me importava e perdoava sim ele e que poderíamos voltar. Afinal, eu tive que aceitar ele me deixar, mas meu coração o amava e ainda o ama e para ele nada daquilo tudo acabou.
-A..agora é tarde, Tobias – reúno toda a minha força e falo para ele. – Olha o estado em que você está – tento ser sensata novamente, e é difícil pensar que isso é coisa de minha imaginação pois sou saudável, me alimento bem, faço exercícios todo dia e não consumo nada que me faça mal. Também durmo bem e não é realmente um sonho, pois tenho perfeita noção de que ainda estou na sala dos corpos que chegam e posso sentir o ar condicionado frio do local, vejo que o relógio está marcando três e meia, então eu posso mesmo estar tendo uma experiência de falar com um espírito – e por uma fração de segundo, penso no que que a Cleide dirá disso, mas não vou ser louca de falar para ela e acabar deixando margem para perder meu estágio probatório ainda, pois vai que ela me avalie e diga para o doutor Celso que estou com problemas psiquiátricos?
-Eu realmente errei com você. Fui patético demais em não aceitar deixar você realizar seu sonho e aproveitar a transferência do seu trabalho. Deveria ter tentado pedir também uma transferência do banco e ficar com você. Mas tive medo de deixar minha casa e coisas em Belo Horizonte e preferi deixá-la ir. Infelizmente, isso foi se revelando uma péssima decisão, e dois meses atrás a Patrícia começou a se tornar muito obsessiva, não aceitando nem que eu saísse com meus amigos e, enlouquecida, foi ela que bateu em meu carro para me fazer perder o controle do volante e bater naquele caminhão, entrando na contra-mão.
-E ela está presa? – é tudo que consigo pensar em perguntar para ele, pasma com as revelações. Nem eu mesma imaginei essa situação.
-Mais ou menos, os advogados conseguiram que ela ficasse numa clínica para se recuperar mentalmente. Mas vamos falar de nós dois – Tobias fica tão perto de mim, que sinto as emoções tentando embriagar minha mente e estou lutando firme contra elas.
-Não existe mais nós dois – falo, esforçando-me para recuperar meu autodomínio. – Você está morto, e essa conversa não era para estar acontecendo de forma alguma! – Eu respondo firme a ele e estou me sentindo nervosa, angustiada; a situação está muito estranha e tudo que quero é achar um jeito de desencostar do armário e de sair da sala, mas ele está quase colado em mim, e mesmo que ele esteja sem um corpo físico ainda assim eu me sinto tão temerosa, que não consigo me mexer.
-Sim, é possível voltarmos a ficar juntos – insiste Tobias, olhando-me cheio de paixão. – Eu vim te pedir uma permissão: deixe-me ficar com você ao seu lado, mesmo que você ainda esteja viva.
E apesar de todo o meu juízo estar me dizendo que aquele absurdo não pode estar acontecendo, eu o perco totalmente ao ver os olhos escuros e magnéticos do Tobias me olhando profundamente, carregado ainda por todo o amor que ele sentia, ou que pelo menos sente ainda.
-Você… está me pedindo para ser o quê? Meu encosto? – indago, enquanto está uma luta em meu interior entre a razão e os sentimentos, que eu não estou sabendo lidar.
-Este nome não é muito apropriado – ele faz uma cara de nojo que acabo achando engraçada sem querer, porque quero parecer durona e não estou conseguindo. – Eu só quero estar ao seu lado, poder voltar a vê-la… ouvi-la… mas não quero lhe fazer nenhum mal, nada que interfira em sua vida – Tobias me fale com voz pausada e sedutora e o pouco de raciocínio que me resta considera o quanto que ele deve ter estudado no mundo espiritual para estar aparecendo aqui agora para mim e falando como se entendesse perfeitamente o que está pedindo e querendo.
-Como não vai interferir? Vai sim – tento protestar e ele me olha com perspicácia.
-Não vou interferir. Sei que você não está namorando com ninguém desde que fiz a burrada de romper com você. Além disso, sei que passa todas as noites sozinha em seu apartamento e só viaja para Belo Horizonte a cada quinze dias para ver seus pais. Afora isso, você ainda não tem amigos e eu seria uma companhia sim.
-Mas tenho meu emprego. – Minha resistência está para acabar… eu posso sentir.
-Prometo ficar de boca fechada, apenas lhe acompanhando enquanto você está aqui. Não quero que ninguém que possa lhe prejudicar, me veja perto de você.
“Uau, se ele tivesse feito isso em vida, ao invés de nos últimos dias ter brigado tanto comigo, tudo teria sido muito mais fácil e talvez ele nem precisasse morrer para ver que errou” – eu penso, mas percebo que ele está sendo muito sincero.
Não gosto de ele ficar jogando minha solidão em minha cara, mas ao mesmo tempo, não tenho como negar que a proposta dele é bastante sedutora.
-Por que você não apareceu antes? Demorou perceber que eu é que faço falta para você? – Sei que estou sendo dura, mas se ele não aprendeu limites em vida, vai aprender agora e entender que se ele acha que não mudou (o que é bem impressionante), eu sei que mudei e não quero que ele me faça de boba de novo.
-As coisas no mundo espiritual demoram mais do que no mundo dos encarnados. Ver Patrícia feito uma louca na pista, batendo em meu carro, me fez acordar e perceber no meu último minuto de vida a besteira que eu tinha feito de ser covarde e não topar ficar com você, mesmo morando longe de mim. E precisei fazer uma série de coisas para que enfim me deixassem voltar assim e tentar falar com você. Minha sorte é que você está acostumada a falar com espíritos… Você se lembra como nos divertíamos no Halloween, sempre com você contando suas histórias mirabolantes de almas penadas?
Não pude deixar de rir junto com ele porque essa minha mediunidade já me rendeu mesmo muitos momentos engraçados e nunca me incomodei com esse meu dom – que aliás foi o que me despertou o interesse por estudar mais sobre a morte e me encantar pela profissão que exerço hoje -, porém, noto passos no corredor do lado de fora. Se algum guarda souber que eu estou aqui falando com um defunto ou espírito, seja o que for, ele pode questionar minha sanidade e vai dar muito rolo para mim.
Faço sinal de shiiiu para o Tobias que aquiesce e esperamos ali, um olhando intensamente para o outro, até o guarda Simão, um homem perto dos cinqüenta anos, atravessar o corredor.
Enquanto isso, aproveito para ponderar o que ele me falou. Como será minha vida agora? Vou viver como naqueles filmes que a mulher perde seu amado e ele volta do pós-vida? Não sei se isso tudo vai funcionar, só sei que nenhum homem mexeu comigo mais do que o Tobias mexe, e só sei que estar na frente dele é tão emocionante como se ainda estivesse vivo.
O que ele me pede também não é muito: poder estar me acompanhando…
Então, antes que eu consiga dizer um “eu aceito”, ele aproveita a proximidade e me dá um beijo ardente, de uma forma que me arrebata porque pensei que senti-lo seria frio e consigo sentir minha boca formigar gostoso com esse beijo e minha pele se arrepiando toda com os braços dele me puxando para mais junto de si, mesmo sem sentir o peso do toque dele, pois ela também o sente.
Toda essa sensação me faz perder completamente o juízo, e não sei o que esperar.
Só sei que espero contar com a ajuda dele para que possamos então manter isso em segredo e que seja bom enquanto dure, porque o que eu mais aprendi com o meu passado é isto: nada é para sempre, mas é interessante quando a própria eternidade entra em cena e nos traz algo que pensamos que não pudéssemos mais ter.
Por Gisele Portes