
Eu tentava prestar atenção na nova aula de História da Bruxaria, mas minha mente estava voando longe. Toda vez que a professora Modreia falava a respeito de todas as mortes de nossos ancestrais, eu visualizava como minha avó e minha mãe foram mortas pelo exército de paladinos do reino inimigo de Neredith.
Até o ano passado quando as aulas eram mais focadas sobre fazer poções e feitiços, eu estava indo bem. Mas História da Bruxaria me trazia lembranças profundas e tentava me focar nos fatos, mas era difícil quando você era a filha de quem fez a história e neta de quem construiu tudo que esse reino estava perdendo.
A professora Modreia percebeu minha distração durante a aula e me perguntou:
-Ganadriela, por que precisamos estudar a História da Bruxaria? Você poderia responder para nós?
Aquilo me pegou de surpresa: eu estava rabiscando em meu caderno os dragões negros voando no horizonte que eu observava pela janela grande, sem conseguir me importar com a aula. Mas a professora não precisava saber de minha distração e desinteresse.
-Hã… Estudamos história porque… – e tentei não me abalar com outros alunos rindo de mim. –Porque é necessário que conheçamos nosso passado a fim de podermos desintegrar as velhas formas e trocar por novas. Precisamos conhecer nosso passado também para sermos capazes de consertá-lo no tempo presente.
A sala ficou em suspenso e ninguém mais falou mais nada depois do que eu respondi. A verdade é que respondi com base mais no que eu já estava tentando fazer por mim mesma e não por causa de algo pronto escrito no livro sobre minha mesa… Só sabia que não queria continuar vivendo perseguida pelos fantasmas de minha própria história e não queria que as pessoas me julgassem pelas ruínas do que eu já fui, mas pelo o que eu era agora. Se estava certo o que eu tinha falado, acabei ficando sem saber, porque antes mesmo da professora falar algo a respeito de minha resposta, o sinal bateu e todo mundo pegou suas mochilas e varinhas para sair da sala.
Só quando passei em frente da professora Modreia foi que ela me chamou e disse que minha resposta foi brilhante e agradeci de forma mecânica, porque duvidava que alguém da sala tivesse entendido realmente o que eu quis dizer, não porque eram assim tão burros, mas porque ninguém lá passou pelas mesmas batalhas que eu, e não sei se seriam capazes de aguentar tudo que eu já aguentei.
Sentei-me para comer meu sanduíche de olhos de rã com sangue de cobra, uma nutrição importante para uma fada-bruxa de feitiços da água como eu estava estudando para ser, e fiquei vendo todo mundo socializando no intervalo, enquanto eu mesma estava comendo sozinha como sempre.
No entanto, senti uma presença muito forte se aproximando de mim e se sentando um pouco mais afastado na mesma mesa longa da cantina.
-Oi, Gana – Petrik me cumprimentou e vire-me assustada, acenando com a cabeça, mas fiquei até comendo de forma mais lenta. Ele estava se especializando nos poderes do fogo, um ruivo musculoso maravilhoso e fiquei impressionada que ele não estivesse com o pessoal dele e que tivesse vindo falar comigo. – Eu amei a sua resposta na aula de História da Bruxaria.
-Mas você entendeu? – indaguei de forma bem direta, porque eu não precisava de confete, mas de pessoas que pudessem me entender.
-Claro que entendi. Você é famosa. Você é filha da rainha Vehana e neta da rainha anterior Androla, então é compreensível que você se sinta com essa necessidade de esquecer-se do seu passado. O nosso próprio povo ainda está tentando também superar o que aconteceu.
-Eu não falei nada sobre esquecer o passado! Eu falei sobre trocar a velha forma de as pessoas verem a história de nosso povo, a guerra por qual passamos de uma forma tão negativa e trocar por uma nova forma de ver isso tudo, onde possamos ressignificar nossa história e não ter vergonha do que aconteceu – respondi, já ficando exaltada. Petrik continuava impassível. Ele era lindo, contudo, parecia que tirou o dia para me incomodar.
-Eu também acho que o trabalho que você está fazendo para que nossa geração possa entender as escolhas de Vehana e Androla que levaram nosso povo a precisar viver escondidos das forças paladinas é muito válido. Nem todo mundo consegue ter estômago para estudar a verdadeira história e poder compreender que toda aquela guerra foi necessária para tentar vencer essas forças tiranas, mas que infelizmente nosso povo não suportou e teve que bater em retirada e vir viver aqui na Floresta de Begrish; mas ainda assim, acho que você não deve parar de continuar com suas apresentações.
Minha ficha então caiu e percebi que Petrik estava sabendo demais. Será que ele andava indo nos bares depois da escola para ouvir minhas palestras nas quais eu estava tentando fazer com que o pessoal entendesse que era preciso que a gente aceitasse nossa história, pois lutar contra aquelas forças era impossível e só ia fazer com que perdêssemos mais vidas preciosas para a guerra travada com os paladinos?
-Eu nunca vi você no bar do Rehko – comentei aleatoriamente, mas torcendo por dentro que ele realmente tivesse ido lá para acompanhar a exposição de minhas ideias e que quisesse entrar para o movimento, ou melhor ainda… que também estivesse interessado por mim – mas isso eu achava difícil demais.
Eu já tinha me cansado de namorados que não aceitavam a minha luta e minha ideologia e que por isso tinham me deixado para ficar com outras garotas desligadas que ainda achavam que continuar brigando iria resolver algo. Já tinha tido muitas decepções amorosas, só que tinha também me fartado de só chorar e pensar no fiasco de meus relacionamentos e queria fazer algo por meu povo.
Queria protegê-lo e amá-lo para que pudéssemos sobreviver e quem sabe voltarmos a ser fortes como éramos dois séculos atrás, antes da guerra de nossa raça de fadas ter começado a guerra contra os paladinos e que infelizmente tinha ficado suspensa só temporariamente, pelo jeito que as coisas iam.
Eu também não queria ser a parte mais fraca da família, porque tanto minha mãe quanto minha avó lutaram bravamente e derrotaram muitos paladinos antes de infelizmente serem assassinadas durante uma invasão noturna em nosso castelo. Eu queria de alguma forma fazer algo de importante para proteger minha gente, mas eu só estava recebendo pedradas e muitos nem queriam me ouvir, porque na mente deles já era hora de levantarmos e enfrentarmos as tropas paladinas e eu não concordava nem um pouco com isso.
O problema estava sendo o meu pai, o rei Hulgor, que era o principal influenciador dessa ideia de nos rebelarmos novamente e reocuparmos as terras ao norte que os paladinos tinham roubado. Ele nem queria me ouvir quando eu falava que ainda era cedo, e era difícil aguentá-lo sempre me comparando com minha mãe e minha avó de que era justamente por terem demorado a agir, que a guerra ficou daquele jeito.
-Sim… eu até queria falar com você logo depois dos seus discursos tão inflamados, vivos e verdadeiros. Mas eu também tive que poupar minha vida, pois o exército de seu pai continua indo atrás de você em cada bar, e eu estava de capuz. Talvez por isso, não tenha me reconhecido. Apesar de tudo, acho que você está certa – Petrik falou com os olhos brilhando para mim de uma forma que eu podia ver que ele estava sendo honesto e ele também tinha entendido a necessidade de mudarmos as atitudes de nosso povo.
Eu frequentava as aulas de bruxaria e à noite tentava percorrer bares atrás de pessoas dispostas a me ouvir e para que entendessem o quanto que era necessário nosso povo se preparar mais e que ainda era cedo se lançar à guerra contra os paladinos.
O problema era que muita gente também pensava que eu estava querendo promover algum tipo de motim contra meu pai, e por isso que eu sabia que estava sim sendo acompanhada de perto por soldados de meu pai para verem até quanto eu estava de fato causando problemas.
A vida na Floresta de Begrish tinha suas dificuldades e passava longe do conforto que tínhamos nas terras de Edimbor, antes de sermos escorraçados, se não até assassinados. Mas oferecia uma proteção mágica capaz de nos manter longe da percepção de qualquer soldado paladino do exército do perverso rei Zalarark e enquanto não saíssemos dos limites da floresta, estaríamos seguros.
No meu entender eu queria apenas que as pessoas de nosso povo tivessem mais tempo para se armarem, reequiparem-se e principalmente se recuperarem porque só tínhamos conseguido nos esconder dos paladinos nem há um ano e eu achava cedo para um levante de vingança.
Mas ainda bem que o Petrik tinha me oferecido sua ajuda tanto para me proteger em minhas exposições e discursos nos bares quanto para me ajudar na divulgação de ideias, e pretendíamos formar uma massa crítica com um número suficiente de vozes para tentar convencer meu pai que prosseguir com a guerra tão já era muita irresponsabilidade e loucura Eu sozinha, até o momento, tinha conseguido poucos adeptos, mas já eram alguns amigos fortes e trabalhadores nessa meta o que já servia para alguma coisa, e só tive a ideia de reunir mais pessoas, porque meu pai não queria me entender de jeito nenhum e ao invés de sofrer com meu próprio pai me ignorando e cada vez mais distante de mim (se já não bastasse a dor de ter perdido no mesmo dia minha mãe e minha avó), eu decidi parar de mendigar pela atenção dele e resolvi mover mais pessoas para fazê-lo perceber o quanto que ele estava agindo de forma prematura e que só levaria a mais mortes.
Depois daquela conversa na cantina em que aceitei a adesão de Petrik, o nosso movimento cresceu rapidamente. Meus discursos ficaram ainda mais interessantes com o show de pirotecnia de Petrik, além da habilidade dele de criar figuras de fogo e mostrar para todos como que o nosso novo refúgio na Floresta de Begrish poderia se perder em chamas e cinzas o que imprimia ainda mais veracidade no que eu queria que todos compreendessem.
No entanto, em poucos dias, acabei acordando em uma cela com meu pai com expressão mais séria do que jamais eu tinha visto antes e do lado de fora.
-Ora, Ganadriela, você continuou mesmo com essas suas ideias excêntricas e ridículas de motivar as pessoas a ficarem de braços cruzados enquanto os paladinos continuam em nossas terras, comendo de nossas plantações e criações e avançando cada vez mais por nossos mares, com todas as coisas que tivemos que deixar para trás? – ele me perguntou, furioso. Porém, eu agarrei nas grades da cela no calabouço, atônita por estar lá sim, mas sem querer perder a chance de enfrentá-lo mais uma vez.
-Pai, o senhor precisa entender: as tendas das sacerdotisas ainda estão cheias de enfermos! Também os armeiros não têm mais tanto minério para fazer armas novas! Temos que repensar nossas estratégias!
-As sacerdotisas não estão conseguindo curar as tropas porque bruxas como você da água estão aí promovendo motins e ficam discutindo abobrinhas ao invés de estarem trabalhando! Não é por isso que pago seus estudos, menina! – meu pai insistiu, sem nem ouvir o que eu dizia.
-Pai, se irmos agora lutar de novo contra os paladinos, nosso tormento será ainda maior. Não temos estrutura e forças para enfrentá-los! – eu bradava atrás das grades, e eu não queria chorar, porém, doía demais ver meu próprio pai me tratando como a uma inimiga.
-Infelizmente terei que pedir para o Dorkano cuidar de você – meu pai me falou de uma forma que foi como mil machados me cortando por dentro. Dorkano era nosso bruxo principal com poderes da terra e psíquicos, capaz de me soterrar em uma porção de obstáculos mentais para que eu não conseguisse sair daquela cela com meus poderes, e eu nem imaginava o que meu pai pretendia fazer com Petrik e meu grupo, ou pelo menos nem queria pensar nisso.
Mas meu pai estava enganado se achava que eu ainda era uma menininha fraca como aquela que ele havia encontrado no dia em que minha mãe e avó tinham morrido… Definitivamente ele não tinha ainda percebido o quanto que eu cresci com toda essa situação.
Eu tinha pouco tempo e não queria gastá-lo com memórias tristes. Assim que meu pai saiu, eu aproveitei e já fiz um feitiço jogando jatos de água fortíssimos que derrubaram os soldados surpresos e comecei a encher todo o local com água o suficiente para as paredes de pedra cederem com a força de meu poder e eu conseguir quebrá-las e sair numa cachoeira que me levou até o rio que cercava nosso castelo.
Infelizmente meu pai já tinha mesmo dado a ordem de pôr um fim a mim pelo que eu estava levando de saraivada de flechas e que foram me acompanhando enquanto eu nadava para sair do rio circundante o quanto antes.
Já fora da água eu pude ver ao longe um grande incêndio se espalhando pela floresta além de faíscas dos poderes elétricos de alguns membros do meu grupo e sabia que eles também estavam lutando por suas vidas porque pelo jeito meu pai tinha baixado um decreto querendo nossas cabeças.
Mas eu estava acostumada com a situação de após abrir meus sentimentos para alguém sofrer todo tipo de violência e não fiquei surpresa com a conduta de meu pai. Ele achava melhor se desfazer da filha que não o obedecia e manter um exército passivo, porém, nem lhe passava pela cabeça que logo ficaria até sem seus fiéis soldados e por pura arrogância de não querer ouvir ninguém que pensasse diferente dele.
O que me restava fazer, eu não demorei nada para me decidir: uni-me com meus parceiros e tal como meu pai que tinha tomado o seu lado, tomei o meu.
Meu pai confundia aqueles poderes que para ele pareciam grandes, com a possibilidade de vencer muitos outros soldados paladinos, mas a diferença é que nosso povo estava derrubando poucos irmãos diante da quantidade praticamente insuperável de soldados das tropas inimigas. Pelo número vasto não teríamos chances contra os paladinos, mas teríamos condições de acabar nos matando a nós mesmos naquele desentendimento tolo.
Enquanto corria pela floresta esperando me encontrar com meu grupo, senti o chão se abrindo diante de mim e não consegui pular a tempo, caindo. Já estava tentando inundar o espaço para flutuar com a água e sair, quando me deparei com Dorkano e nem acreditei.
-Escute, Gana, não quero machucá-la, só quero que pare de fugir e me escute – Dorkano me pediu e me jogou uma corda, e eu fiquei em dúvida se realmente poderia ouvi-lo com segurança, porque era o cara que meu pai tinha mandado me matar enquanto eu ainda estava no calabouço. Agora que ele sabia que eu tinha fugido, o que mais ele esperava fazer contra mim?
-Somente ontem eu descobri que seu pai está disposto a entregar nosso povo para o rei dos paladinos Febrian, e é por isso que ele está insistindo que saíamos de Begrish e vamos à guerra, mas é lógico que apesar de já termos recuperado parte de nosso poder, ainda não temos condições de enfrentar os soldados – Dorkano me revelou, depois de eu ter dado uma chance para ele e estarmos conversando perto de uma árvore fora da trilha.
-Ele sempre foi um pouco seco, mas ele tem sido tão cruel comigo e sem querer me entender que eu realmente já cheguei muitas vezes a pensar que ou ele tinha sido enfeitiçado por alguém, ou ele estava ficando louco de vez – a minha resposta analítica e fria assustou Dorkano, mas ele percebeu que eu também não estava para brincadeira.
-Só há um jeito de parar esse genocídio de nossa raça, Gana – ele falou em tom sério, e parecia prender o choro. Nunca pensei em ver o nosso bruxo mais poderoso tão frágil, mas minha intuição de novo falou alto comigo e já esperava o que ele queria dizer.
-Já sei. Da mesma forma que ele quis se livrar de nós, temos que nos livrar dele.
Dorkano fez que sim com a cabeça, e aquela noite se tornou simbólica para dar um basta em toda a situação.
Dorkano invocou uns cavalos formados por terra e fomos correndo até o centro do povoado em uma grande clareira, dominada já pelo fogo de membros do meu grupo tentando ainda resistir aos soldados. Por sorte a maioria ainda estava viva apesar dos ferimentos e tanto eu quanto Dorkano, que ainda estávamos com muita energia, conseguimos derrotar os soldados concentrados ali.
Usei meus poderes de cura nos meus amigos, enquanto Dorkano repassava para eles o mesmo que já tinha me revelado.
Se eles tinham entendido a insanidade de enfrentarmos os paladinos antes da hora, ficaram ainda mais cientes de como nosso rei era uma pessoa maldosa e interesseira, disposto a dar nossas vidas em troca de ser mantido vivo e vivendo bem com os paladinos, e tudo que ele tinha falado sobre honrar nossas terras era uma mentira: ele apenas queria ficar com tudo para ele e mancomunado do lado dos paladinos.
Com todos recuperados, partimos em cavalos de terra de novo até o castelo de meu pai.
Tínhamos planejado que o meu grupo ficaria lutando contra os soldados, enquanto me davam cobertura para que eu conseguisse ir até meu pai que continuava na sala do trono e tranquilamente esperando que seus soldados arrebentassem com tudo, como se fosse fácil assim.
Contudo, eu não precisei fazer o trabalho mais pesado: depois de me esgueirar pelos cantos com cuidado e chegar até o trono, encontrei meu pai com uma faca em seu próprio pescoço, fincada após um lampejo de consciência.
Mesmo trêmula e pasma, consegui ver um bilhete no colo dele com meu nome e abri para ver que estava escrito: “Gana, me perdoe. Eu só fui conseguir voltar a ter consciência agora, mas eu também estava sofrendo com feitiçaria dos paladinos e quase cometi o maior erro de minha vida.
Quero que você seja a nova rainha e mostre para eles que o povo não vai ceder a eles, mas no tempo que você achar melhor.”
Então, agora eu sabia que eu poderia enfim mudar realmente a história pesada do passado e salvar meu povo e fazer com que os nossos soldados voltassem a entender que não era matando nossa própria raça que iríamos resolver àquela guerra tão inútil e que eu estava disposta a com muita bravura e discernimento encerrar de uma vez por todas.
Por Gisele Portes