A Alma do Vulcão

O cheiro carregado de cinzas no ar trazidas pelo vento da noite me acordou. Tossindo, fui até a janela e pude ver no horizonte uma cena que me fez entender que eu não estava tendo necessariamente um pesadelo com gritos.


Aquele vulcão acordou de seu sono secular e o monte de terra ao seu redor já desmanchava lambido por suas línguas de lava, brotadas do que parecia o próprio inferno.


Na pequena cidade aos seus pés majestosos os pobres mortais berravam prestes a serem pisoteados como insetos pelo gigante enfurecido.


Eu mal podia ver o céu que já era para estar recebendo as primeiras luzes daquela segunda-feira que provavelmente ficaria marcada nas notícias dos jornais de todo o mundo. Um jornalista pode tentar tirar férias, mas notícias não.


Como primeiro impulso vesti um terno, peguei meu celular e avancei para a rua.


Eu era o peixe correndo contra aquela correnteza de cores borradas e desesperadas tentando sobreviver ao enorme laranja que vinha do norte.


Policiais tentaram me deter, e tive que ser esguio porque não ia ser a lei que novamente pararia uma foto minha, aleijando a história de uma parte tão importante.


Eu não esperava algo assim, nem mesmo os especialistas acreditavam que esse vulcão fosse acordar tão cedo. Mas, ignorando os cálculos de tão limitadas criaturas, ele despertou mostrando todo o seu poder, vindo com força total de suas entranhas como quem se sacode de pulgas.


Correndo eu não teria tempo suficiente de me aproximar, então precisei aproveitar a oportunidade. Peguei um carro largado pelo dono aflito e me aventurei pelo trânsito caótico até ver adiante uma força-tarefa conduzindo todos, tentando quase que em vão pôr uma ordem.


Quando finalmente estava próximo de área já evacuada, policiais vieram ao meu encalço tentando me preservar de algum perigo. Só que para mim não haveria maior dano do que ficar sem minhas fotos.


As sirenes ecoavam alto atrás de mim ainda mais ao reverberarem entre as paredes das casas já esvaziadas.


Dirigi o mais rápido que pude até a própria rua me parar quando a mesma se abriu pelo efeito dos tremores cada vez mais intensos.

Avancei até a beira da boca daquele precipício de concreto e restos de construção derretendo em temperaturas quentíssimas ansiando me engolir e esticando meu braço, pude fotografá-lo no auge de seu esplendor.

Não tão perto quanto gostaria, só que mais próximo do que jamais alguém teria coragem de fazer, a não ser por meio de artificiais drones – mas isso não é ter fibra de verdade.

Infelizmente os policiais não entenderam meu objetivo e nem minha profissão valeu de justificativa.

Fui levado para outra ilha, e após muito me explicar na delegacia, me liberaram e num abrigo para os civis evacuados juntos vimos pela TV o horror todo mastigando nossas residências e pertences.

Já eu, só podia rir de tudo aquilo porque ao menos eu estava com o meu celular com as imagens perfeitas que eu usaria para alimentar minhas redes.


Eu já me via como o repórter que teve coragem de registrar o início de uma verdadeira fúria da natureza.


Mas logo os policiais deixaram claro que nem ali estávamos seguros e que uma densa parede terrosa do vulcão não resistiu à força das lavas e despencou no mar.


“Não acredito que fiquei aqui e perdi isso!” – gritei enfurecido, quase que avançando para cima dos policias e pondo em pratos limpos a injustiça que fizeram comigo.


“Acalme-se, senhor!” – Eles me pediram, mas como poderiam me entender? Não era o trabalho deles que tinha sido prejudicado e não fora concluído como deveria.


Perdi uma chance de ter feito uma cobertura muito mais profissional. Mas era melhor do que o que restara de material para as TVs de outros jornalistas que estavam vindo depois de mim, e eu era o homem que tinha visto o começo do fim do mundo.


Como eu não queria perder mais tempo, voltei para o meu lugar e passei a madrugada colado na TV e no meu notebook. Revirei a internet toda para assistir o movimento de vingança do vulcão, consumindo fascinando tudo que se referia àquele que por muito tempo foi satirizado por estar aparentemente apagado.


Todos que duvidaram de sua força e poder estavam engolindo água.


Tsunamis de mais de cem metros chegaram às principais áreas costeiras do mundo; filhas de um pai tirano mostrando que não iria mais aceitar desaforos.


Enquanto eu via os outros no abrigo chorando, eu só me preocupava por não ter conseguido resistir tanto quanto aquele vulcão que por anos ficou impotente por fora e já reconhecia seu poder vindo após sono profundo.

Aquele que engoliu todo tipo de ofensa, desprezo. Uma irritação silenciosa com todos os folgados indo morar cada vez mais perto e sem poder reagir à altura – até que chegou seu grande momento.


A cada reportagem mais eu me sentia como o vulcão: o desprezado agora mostrava o peso de sua vingança.


Claro que outra parte de mim, a parte treinada para me comportar bem na sociedade sentia sim pena de todos os envolvidos. Mas ao mesmo tempo eu via as pessoas que se foram ou que perderam tudo como grandes almas altruístas. Elas cumpriam o papel fundamental do filho que apanha primeiro de um pai responsável que apenas quer ensinar respeito.


Além disso, havia uma vantagem: eu também poderia viver livre na natureza ao invés de me limitar tendo só o que meu salário e cartão de crédito poderiam comprar. Seria dono de toda a natureza, de todo o mar e poderia enfim me isolar em um silêncio de paz tal como o vulcão.


A ideia foi me seduzindo cada vez mais intensamente por todos os dias seguintes.


A cada tremor longínquo que ainda sentíamos e mesmo que muitos já estivessem saturados e exaustos das notícias trágicas eu não via a hora de ser liberado novamente.


Afinal por mais que ser repórter tivesse parecido a melhor opção há alguns anos para saciar meu desejo por mais ação em minha vida, um novo objetivo se fez claro dentro de mim iluminado pelas chamas do vulcão.


Assumi sem rodeios que não tinha me restado mais nada de importante
e era depender de ajuda de meu país natal ou estrangeira para voltar para casa, ou assumir tudo que estava sentindo. Portanto, optei por na calada da noite seguir o caminho que me chamava ardentemente.


Como os policiais pretensiosos já imaginavam que todos estavam seguros, eles mesmos já tinham baixado a guarda viril do primeiro dia do incidente – que me recusava a chamar de acidente -. Assim, dessa vez fugi com sucesso do abrigo.


Para voltar para a outra ilha usei um fogo em minhas palavras que eu mesmo desconhecia. Então, consegui envolver em uma conversa um piloto e retornei para onde estava a fonte de minha inspiração.


‘O senhor tem certeza que sabe o que está fazendo?”


”Fica tranquilo. Já gravei matérias em zona de guerra e em enchentes. Perigo é a amante mais sedutora que existe. Uma vez que te beija, você vê que uma vida sem perigo, é uma vida inútil.”


Realmente me impressiona o que o dinheiro pode levar as pessoas a fazerem. Me despedi amigavelmente do piloto e peguei minha mochila. Sem hesitar, avancei pelas ruas pretas por causa das lavas resfriadas como a noite também já partindo.


O cenário que indicava que o terror tinha se apropriado de tudo feito um rei que volta ao seu trono por mais de século abandonado não me assustava nem um pouco.


Pelo contrário, eu me sentia mais do que nunca senhor de toda a situação e se na primeira vez quando ele acordou não pude ir prestar minhas homenagens, eu queria fazê-las agora.


Subi caminhos íngremes com minhas botas preparadas e meio escorregadias com muita terra solta. Era um ambiente agredido que se mesclava ora com a natureza, ora com os pertences humanos. Havia roupas entre as árvores, partes de carros sobre as pedras e marcas de sangue e de seiva. Tanto o homem quanto o verde ambos vencidos pelo fogo.


Precisei escalar o topo. Satisfeito de ter enfim chegado, mergulhei até ser abraçado pelas lavas e cinzas, me fundindo com quem eu gostaria de ser. Mas que em minha fragilidade humana nunca pude.

Por Gisele Portes

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