
Olá, minhas galáxias! Espero que curtam meu vídeo abaixo e o conto de hoje!
1.
Theodorius observava com sua luneta no alto do morro onde ficava sua casa e laboratório pessoal, mais um dia o voo dos dragões pelos céus do arquipélago em que vivia de Dragoquistão.
—… Os dragões pretos continuam carregando até cinquenta quilos de berinjela por viagem. Os dragões amarelos, talvez por serem mais magros, conseguem carregar até sessenta quilos de laranjas e limões, mas demoram até quarenta e três minutos a mais para voltarem… Ok, checado e checado. Vou precisar acrescentar pelo menos de mais dez por cento de pedras para aumentar a força nas asas dos pretos e mais quinze por cento de pedras para a velocidade dos amarelos…
Theodorius falava para si mesmo, toda hora se inclinando em uma mesinha ao lado de sua luneta para anotar seus cálculos e conclusões em um grosso caderno.
— Nossa, Theo, largue um pouco desses seus rabiscos — Theodorius reconheceu a voz desdenhosa subindo o gramado atrás de si e aproximando-se, mas continuou se apressando com suas equações antes que aquela conversa inapropriada quebrasse seu raciocínio. — Não finja que não está me ouvindo. Amanhã começa a semana da Bênção do Dragão e daqui a uma hora a Feira Central já vai abrir os portões. Vim tomar um banho e pôr uma roupa melhor, porque estou cheio de excrementos de dragões em minhas botas, mas pelo menos vendi muitos ovos e tenho dinheiro para curtir com muitas mulheres. E você? Vai continuar aí nesse monte de contas sem sentido?
Theodorius respirou fundo após ter enfim terminado sua última equação para ver como melhorar a logística de entrega dos dragões. Precisava de mais paciência.
— Não são rabiscos, Asafe. São meus pareceres sobre um projeto que vou entregar para a Comissão de Lordes do reinado analisar. — Theodorius respondeu de forma mecânica, pois já estava cansado de como seu irmão mais velho não via sentido em seu trabalho científico. Contudo, não queria perder tempo e guardou seus estudos em sua mochila para pegar seu dragão azulado de transporte e ir entregar na corte. Asafe, rindo ainda em tom arrogante, aproximou-se dele subindo já na sela de Amaranten e disse:
— Acho que você vai só perder viagem. Às vésperas da Bênção do Dragão duvido que os lordes dessa comissão sequer trabalharam hoje e não enrolaram o dia todo apenas pensando em tudo que farão na Feira Central. Aposto que até já saíram para a festa. E o próprio Hadhamar também tem preocupações bem mais interessantes e perfumadas.
Theodorius fitou o irmão do alto de sua sela, e notou o tom pejorativo nos dizeres de Asafe.
— Tenha mais cuidado com a forma que você trata a Comissão de Lordes, e principalmente o nosso estimado rei. Se você não segurar sua língua, é perigoso que os soldados do rei a sirvam junto com a ração dos dragões no estábulo real.
— Está me ameaçando, irmãozinho? — Asafe continuou com sua expressão de deboche, e Theodorius tentou manter a compostura. Toda aquela conversa só estava o atrasando e de fato ele sabia que só tinha até aquela tarde para entregar o resumo de seus cálculos e conseguir um auxílio real para prosseguir com suas pesquisas e experiências.
— Não, só estou lhe aconselhando para que tome mais cuidado com essa sua raiva com nosso rei. Sem contar que ao contrário de você, existe gente que gosta sim do que faz, e a Comissão dos Lordes pertence a esse grupo. Tenho hora marcada, então vá para sua festa. Só peço para que não gema muito com as mulheres em seu quarto, porque estarei trabalhando no porão e preciso de concentração.
— O rei só está abusando de sua inteligência e pagando muito mal a você. Quando vai perceber?
Theodorius deixou Asafe no chão indignado, e alçou voo.
***
— Olá, Theodorius! Pela sua cara de alegria, temos resultados positivos! — De fato só havia mais um lorde na ampla sala da comissão, Vellar, e Theodorius queria se manter alegre por ter dados consistentes para entregar, porém, lembrou com amargura do que Asafe lhe falara, e ficou pensando que daria com os burros n’água, após uma longa viagem, pois não morava tão próximo do castelo.
— Sim, quero que o senhor analise meus relatórios, por favor. Como conversamos semana passada junto com a equipe de cientistas do reinado, é possível tornar nossos dragões ainda mais ágeis e eficientes nas entregas da produção de nossa agricultura para o continente. Mas ao contrário do que o grupo de cientistas estava propondo inicialmente, apenas mudanças de rotas, ou mesmo construir mais pontos de pouso na praia do Continente vai adiantar muito pouco para termos um aumento real na quantidade e qualidade das entregas e um melhor aproveitamento de nossa produção.
Vellar trocava seu olhar entre os esquemas com esboços focando nas asas, patas dianteiras e traseiras dos dragões, medições de peso e altura, velocidade e capacidade de levar cargas, além de comparações com as distâncias entre os principais pontos de pouso e descarregamento das entregas do Continente de Draconthia e para o rosto de Theodorius, ficando cada vez mais animado, conforme explicava suas deduções.
— E o que você sugere?
— Que façamos implantes de chips com minérios especiais nos nossos dragões.
Vellar arregalou os olhos. Agora ele tinha chegado em outras folhas amareladas de esquemas quadriculados, mostrando como que Theodorius tinha arquitetado também a maneira de formar chips de placas diminutas de metal com pedras das cavernas da região norte de Draconthia, conhecidas por suas importantes propriedades e que poderiam dar ainda mais poderes de voo, força e rapidez nunca antes imaginadas para os dragões, facilitando, assim, as transações comerciais entre o arquipélago e o continente.
— Os dragões nascem principalmente nessas cavernas de Dravernak por causa das pedras especiais que têm lá e que as mães dragões sabem muito bem para que servem: as esmeraldinas dão mais vitalidade para os dragões verdes; as pedras de rubia dão mais força para os bebês dragões vermelhos; as turmalitas dão mais poder para os bebes dragões pretos; a safirina dá mais destreza para os bebês dragões azulados e as ourolas dão mais potência para os dragões amarelos.
— E como você chegou à conclusão que poderemos implantar essas pedras direto nos dragões? — perguntou Vellar, estupefato com tamanha engenharia genética descoberta.
— Porque já fiz em meu laboratório chips com safirina e implantei nas costas de Amaranten, há três meses, e os resultados são incríveis. Meu dragão azulado atinge velocidades agora de mais de quinhentos quilômetros por hora e continua doce e obediente, com a cicatrização tendo ocorrido praticamente no dia seguinte à pequena cirurgia que fiz nele.
— Como? Vamos lá fora, quero ver isso agora.
Theodorius percebeu que Vellar tinha se impressionado com as possibilidades apresentadas, mas precisava ver a prática das ideias.
Amaranten estava comendo uma porção de amoras que uma tratadora do reinado tinha lhe trazido, na área de pouso dos dragões, fora do setor da comissão no castelo do rei Hadhamar.
— Abaixe um pouco, Amaranten. Deixe-me mostrar suas costas para o senhor Vellar – Theodorius pediu com respeito e o dragão parou de comer e o obedeceu na hora, curvando-se elegantemente. Era visível apenas uma pequena cicatriz, mas ela vibrava em um tom azul brilhante devido ao chip de safirina trabalhando.
— Pegue! — Theodorius nem precisou terminar de falar direito sua próxima ordem, e em uma fração de milissegundos, o dragão já tinha abocanhado no ar, uma pedra atirada ao máximo de distância que Theodorius conseguiu.
O próximo teste que o próprio Vellar propôs para ver se realmente a destreza de Amaranten era diferente da dos outros dragões azulados foi com três dragões da mesma espécie do estábulo real.
Em um voo no sentido vertical apenas para ver qual deles, junto com Amaranten, poderia atingir primeiro a altura máxima de 9000 pés, e além de bater essa altura em segundos outra vez, sendo que os outros dragões só conseguiram se nivelar alguns minutos depois, Amaranten ainda se exibiu mais um pouco, e Vellar até o perdeu de vista nas nuvens, novamente em questões de segundos.
— Kaor, venha ver isso! — Outro lorde tinha chegado à área de pouso com seu dragão vermelho, estranhando a surpresa do colega, e cumprimentou Theodorius que apreciou a boa sorte de ter vindo mais um lorde para acompanhá-lo em sua apresentação. — Peça para Amaranten fazer de novo isso. Desçam, rapazes! — Vellar comandou os outros dragões azulados que também estavam assustados com o que viram o parceiro de raça fazendo. Theodorius deu um assobio e Amaranten voltou tão rápido que o vento de seu movimento quase derrubou o magro Kaor que não esperava ver em vida tamanha rapidez de um dragão azulado.
— Co-como isso é possível?
— O senhor tem uma irmã médica, que trabalha na área central. E sabe como que os chips de pedras das cavernas de Dravernak estão há muito tempo ajudando a curar dores dos enfermos. Eu apenas pensei que se as pedras de lá podem emitir frequências que causam sensações de bem-estar nos humanos, porque não tentar ao invés de apenas deixar sobre a pele, como as pessoas fazem com suas placas de cristais, fazer uma pequena incisão e implantar uma plaqueta com fragmentos do cristal correspondente com a cor do dragão? Como falei para Vellar, as próprias mães dragões quando estão grávidas migram de todo o continente de Draconthia para as cavernas do Norte.
“Fiquei muitos meses observando também esse comportamento delas e notei que é mais do que um simples costume e existe todo um fundamento biológico para favorecer com que os filhotes nasçam já recebendo essas frequências harmônicas com suas espécies, e por reações de bioeletricidade, tenham mais vitalidade e força, como instinto de preservação de todas as raças. Mas depois, com cinco semanas de vida, os pequenos filhotes já podem voar e, então, as mães retornam com eles para as regiões onde estão habituadas a conviver com outros membros de sua sub-raça e que acabam tendo geologia diferente e não produzem esses minérios especiais.
“Só pensei no que poderia acontecer se fosse possível eles continuarem carregando suas pedras correspondentes por mais tempo dentro deles, e consegui testar com o meu Amaranten. O efeito foi tão bom que tive que reformar duas vezes meu porão nos últimos meses, de tanto que ele ficou muito mais rápido e cheio de energia.
Theodorius encerrou sua explicação alisando com carinho o focinho de Amaranten. Os lordes ficaram tão impressionados com os resultados que ao contrário do que Asafe tinha lhe dito, nem queriam perder tempo pensando na festa da Bênção do Dragão. “Isso tem todo ano, agora uma descoberta científica dessas, não pode passar batida!”, o próprio lorde Kaor disse para Theodorius, enquanto Vellar escrevia cartas às pressas para todos os outros lordes e as deixou numa bolsa para um dragão amarelo levar para os outros lordes já em suas casas, para que fossem comunicados da descoberta.
Mas o mais importante foi avisar ao rei Hadhamar, e Theodorius mal pôde dormir naquela noite, tenso porque os lordes Vellar e Kaor lhe garantiram que o rei também receberia a carta de comunicação e muito provavelmente, o chamaria para conhecer e poder ver também seus testes.
E não precisou nem o dia amanhecer.
Ainda entre os primeiros raios de sol, Amaranten se exibia com voos estarrecedores entre as poucas nuvens, e Hadhamar estava tão boquiaberto, que seus dentes de ouro refulgiam expostos.
— De quanto o senhor precisa para a implementação de sua pesquisa?
Theodorius era um homem singelo e entregou o seu pedido de verba científica, preparado previamente. O rei olhou a quantia no papel e o pedido de uma equipe de cientistas com habilidades cirúrgicas e conhecimentos de anatomia dracônica para ajudá-lo nas operações.
— E o senhor tem ideia de quanto tempo vai levar para que todos os dragões tanto reais quanto populares já estejam prontos?
Theodorius tentou manter o ritmo da respiração para não revelar o quanto estava nervoso por ver que sua ideia tinha realmente convencido até o rei.
— Com cirurgias leves apenas na primeira camada subcutânea poucoscentímetros abaixo das escamas, os chips acabam se ajustando em no máximo dois dias, pois são minérios com os quais os dragões já são biologicamente habituados. Mas é importante que se saiba colocar bem esses chips, para que eles não acabem se alojando muito na parte intramuscular que aí, o tempo de recuperação pode ser até de uma semana.
— Kaor, convoque a maior quantidade possível de cientistas para trabalharem na equipe sob direção do senhor Theodorius Kapren. De cinquenta profissionais para cima.
Até mesmo o lorde Kaor ficou impressionado com a quantidade de cientistas que o rei quis dedicar para esse trabalho. Theodorius tentava disfarçar o suor frio pela testa, pois não esperava um reconhecimento tão rápido.
— E o senhor, Vellar, comunique o Tesouro da Corte para destinar ao projeto desses chips quinze milhões de moedas de ouro. — Vellar também arregalou os olhos com o valor, mas já se retirou para cumprir a ordem.
— Em um mês é possível todos os dragões já estarem prontos, com a disposição dessa equipe e orçamento? — O rei quis saber, em tom tão sério que Theodorius viu o enorme interesse dele para obter logo os efeitos da sua tecnologia de aprimoramento.
— Com certeza, majestade!
E com um gesto simpático de visível esperança no olhar o rei Hadhamar apertou a mão do cientista Theodorius, que voltou para casa com a cabeça voando diante de sua nova oportunidade tão rápido quanto Amaranten.
2.
Só que como já esperava, Theodorius nem pôde contar a novidade para Asafe que estava realmente bem ocupado com duas loiras das lavouras de arroz e trigo e ele até arrumou uns algodões na gaveta de sua escrivaninha no porão iluminado ainda por velas, como o resto da casa.
Sonhava com o dinheiro do trabalho para o rei para enfim adquirir lâmpadas a vapor, um bem ainda fora de suas possibilidades econômicas.
Mas o importante era que tinha conseguido uma conversa com o rei, e como não podia contar nada para o irmão que parecia não se interessar nem um pouco por sua mais recente conquista profissional, Theodorius ficou acarinhando Amaranten e conversando com ele, todo empolgado:
— Você foi incrível, Amaranten! Muito obrigado por sua apresentação!
Amaranten abaixou a cabeça em sinal de gratidão.
— Eu vou subir na cozinha e vou esquentar no forno à lenha mais torta de amora de ontem, porque você merece! — Todo animado, Amaranten nem mesmo queria esperar e começou a pular tanto na frente de Theodorius que ele ficou com medo que o dragão alçasse voo ali dentro do porão, mesmo tendo o adaptado para ter mais distância entre o chão e o teto, para que Amaranten pudesse se locomover sem enroscar ou derrubar nada.
— Está bem, já entendi! Vem, vamos pegar a torta fria mesmo e nem vou discutir com você depois de sua exibição excelente para o rei!
E assim que ele abriu a porta, deu com Asafe com o punho em suspenso no ar, pois já ia lhe chamar a atenção por causa do barulho de Amaranten pelo amadeirado da escadaria e que estava incomodando suas parceiras. Porém, Theodorius notou o pesado olhar de censura sobre si.
— Exibição excelente para o rei, é? Você foi mostrar a aberração que você fez nesse pobre animal logo para aquele desalmado?
Theodorius congelou no batente da porta. Amaranten, com medo da acidez das palavras de Asafe, encarava os degraus, de cabeça e focinho baixos e asas recolhidas junto ao corpo.
— Deixa a gente passar. Ao contrário de você, nem eu e nem o Amaranten comemos ainda, pois estávamos trabalhando até agora.
— Ficar se apresentando feito um bobo da corte com seu bichinho de estimação para aquele asqueroso não é justamente o que eu chamaria de trabalho — Asafe continuou com sua ironia e desprezo, observando Theodorius tentando não arrumar encrenca e apenas abrindo um móvel adaptado de chapas de metal, alto e retangular, que ele tivera a ideia de cobrir com os gelos que Amaranten podia soltar com suas rajadas gélidas, por ser um dragão azul, e cuja ideia tinha sido um sucesso na região em que morava.
No entanto por ser muito caridoso, ele acabara fazendo mais móveis do tipo para doar para as famílias que conhecia poderem também ter comidas congeladas pelo menos por alguns dias na semana, ou até mais se buscassem gelo com outros dragões azulados pelos estábulos da cidade. Era tão comum usar as habilidades dos dragões para ajudar no andamento da rotina das cidades tanto no arquipélago quanto no Continente, que Theodorius não via motivo por cobrar por esse serviço.
Já Asafe achava um absurdo ele ficar fazendo caridade com a ciência que dominava tão bem e vivia jogando na cara do irmão que ele só era explorado e aproveitado, enquanto os outros moradores das redondezas riam de sua habilidade, mas o consideravam apenas um pobre louco que merecia pena.
— Quantos anos você precisa trabalhar para conseguir essa quantidade de ouro, irmão? — Theodorius perguntou para Asafe, mostrando-lhe o documento assinado pelo rei e pela Comissão de Lordes com a quantia enorme que ele poderia pela manhã, a vir em poucas horas, buscar no banco do centro, caso desejasse, como pagamento prévio por oferecer seus trabalhos científicos para o reino. Em seguida, deixou um prato com uma torta quase inteira na borda da mesa para que Amaranten pudesse se alimentar.
De repente a cozinha se tornou um espaço muito quente. Havia fogo, muito fogo vermelho nos olhos de Asafe, assim que ele terminou de ler por pelo menos umas três vezes o valor destacado e substancial, pelo o que Theodorius pôde perceber.
— POIS PREFIRO GANHAR POUCO COMO TREINADOR DE DRAGÕES DO QUE ME VENDER PARA ESSA COROA CHEIA DE LAMA! — Asafe esbravejou tão alto que Amaranten se afogou com um pedaço de torta, e Theodorius correu para dar tapinhas nas costas escamosas do dragão e ajudá-lo com o pedaço enroscado em sua garganta. A cada tosse dele, cubos de gelo caíam pelo chão da cozinha.
— Para de gritar desse jeito, Asafe! Você mesmo vive reclamando de morarmos nesse morro porque não temos como pagar o aluguel no centro. Com esse dinheiro que vou conseguir com meu trabalho científico para o rei, finalmente poderemos morar em uma casa muito melhor!
— O qu… o que, está acontecendo? — Duas moças loiras desceram por outra escadaria que levava para o andar de cima, dos quartos de Asafe e de Theodorius. Estavam com medo da briga dos irmãos e estranharam o ódio que viram no apaixonante Asafe, que durante a festa na feira tinha as tratado com tanta sedução e gracejos e ainda pagou para elas bebidas de suco de laranja com vinho branco — coisa que ganhando pouco nas lavouras, nunca tinham experimentando e aceitaram passar a noite com ele.
Porém, se o tom da desavença entre os irmãos já as assustaram, ao verem o dragão Amaranten tendo uma crise de tosse e soltando pedras de gelo cada vez maiores pela cozinha, apavoraram-se ainda mais. Elas não tinham contato direto com dragões e nem poderiam comprar um para ajudá-las nos serviços domésticos.
O próprio Amaranten, Theodorius só tinha conseguido porque Asafe ganhara o ovo que daria origem a ele num jogo de apostas, mas queria um dragão vermelho por causa das labaredas de fogo e fora enganado no jogo.
Entretanto, Theodorius insistiu tanto que Asafe ficou sem paciência e resolveu deixar o ovo com o irmão, que tratou com todo o carinho do mundo, o cercando por muitas noites com cobertas de malha grossa, fazendo o possível para reproduzir o calor de uma mãe dragão. E logo que ele nasceu, para comemorar, fez uma torta de amora, que o dragãozinho guloso queria comer de qualquer maneira, passando a se tornar sua comida favorita.
— Saiam, saiam, agora, Glaucéria e Ritânia! — Asafe exigiu de forma autoritária, abrindo a porta para a rua e que novamente não se encaixava com o jeito atraente que ele teve há poucas horas e que servira para seduzi-las tanto.
— Seu grosso! — insultou-o Glaucéria, passando para sair mesmo.
— Nunca mais nos procure de novo, babaca! — determinou Ritânia, mas Asafe nem se abalou e fechou com tudo a porta assim que elas foram embora.
— Obrigado por estragar minha noite!
— Por favor, não rasgue esse papel! É meu documento de garantia para ir ao banco mais tarde! E preciso desse dinheiro para conseguir comprar alumínio no centro e começar a produzir as chapas e fixar os minérios necessários para os chips que irão ser implantados por minha nova equipe de cientistas!
Theodorius tentou explicar sua situação, para ver se isso de alguma forma amolecia o coração de pedra de Asafe. Desorientado de raiva, ele olhou por um minuto para Amaranten que também estava com os olhos úmidos, prendendo o choro.
— E você ainda acha que vai sobrar algum dinheiro para comprar outra casa para a gente, Theo? Você é um tapado mesmo. Entende muito de ciência, mas não entende da malícia humana… Esse rei não está te pagando: ele deu esse dinheiro para que você compre os materiais e ainda pague essa equipe. E no final, se sobrar algo, será tanto quanto na vez em que você entregou aquelas coisas para todo mundo aqui do nosso bairro, e que você disse que chamava “geladeira”.
— Sim, eu sei que esse valor é para a pesquisa. Mas daqui alguns dias, quando os dragões do rei estiverem já adaptados, eu vou assinar outro contrato recebendo pelos meus serviços também, pelo o que os lordes Vellar e Kaor me falaram.
De alguma forma, o fogo escondido nos olhos de Asafe ainda não tinha se apagado. Mas diminuiu um pouco de tamanho, talvez por sentir pena do irmão.
— Só não é mais fácil de te enrolar, porque você tem ossos, o que dificulta para te dobrar feito um tapete.
— Faz muito tempo que você tem essa birra com o rei, e sempre disse que queria juntar um dinheiro e sair do continente, para outras terras, para outros reinos. Nunca entendi o porquê! Mas eu vou te ajudar com sua viagem, irmão.
Theodorius falou com todo seu coração. Ele odiava quando Asafe ficava descontrolado daquele jeito, e até achava que tinha algo a ver com a morte recente dos seus pais, há apenas dois anos. Algo mudara no comportamento do rapaz, tão assertivo sim, mas nunca tão propenso a explosões de fúria como aquela.
Porém, Asafe lhe fez um corte nesse mesmo coração muito mais profundo que o que ele passaria a fazer de forma cirúrgica nos dragões ainda naquela semana:
— Não precisa se preocupar comigo. Vou partir agora mesmo.
— Como assim? Volta aqui, Asafe, vamos conversar direito! — Theodorius saiu correndo atrás de Asafe que saiu pela porta dos fundos, em passos firmes até o quintal e o estábulo caseiro com seu dragão vermelho ocre Veëbrat.
Theodorius nunca destratou Veëbrat, todavia, nunca entendeu também como que Asafe conseguiu um dragão vermelho daquele estilo. Era um pouco mais maduro que Amaranten, mas com dois metros a mais e por isso nem entrava na casa dos irmãos e passava a maior parte do tempo deitado no quintal, preso por correntes fortes. Sempre Asafe deixava-lhe numa bacia de madeira longa, vários coelhos mortos que ele caçava nos campos em que trabalhava treinando dragões selvagens que não queriam obedecer aos humanos de primeira.
Parecia que Asafe tinha uma linguagem natural com esses animais — uma habilidade de conquistar a confiança deles, tanto que auxiliava donos de dragões que não conseguiam ter uma boa convivência logo que ganhavam dragões novos.
Mas apesar desse talento, Theodorius notou que nunca Asafe trabalhou para amaciar o caráter pesado de Veëbrat que parecia sempre olhar para ele como se ele fosse um possível pedaço de carne comestível, e isso o apavorava em segredo.
— Eu não converso com bajuladores desse reizinho medíocre. — E olhando com ainda mais desprezo para Theodorius e para Amaranten que finalmente estava melhor e atrás de seu dono, ainda intimidado pelo clima de discórdia, Veëbrat alçou voo assim que Asafe fez gesto com suas rédeas amarradas em seu pescoço.
3.
— É, Amaranten, o meu irmão realmente se azedou e eu não sei nem com o quê… — Após a terceira semana sem notícias de Asafe, Theodorius fechou a caixinha de correio que estava abarrotada de cartas de fãs de seu trabalho ou com dúvidas sobre como cuidar dos dragões com chips. No entanto, estava ainda mais convencido que tinha feito o certo por ter se dedicado apenas ao seu trabalho e não ter ficado se lembrando da briga, entristecido.
Em menos de uma semana mais e mais pessoas ficaram sabendo das incríveis técnicas de bioengenharia e modificações corporais que a equipe chefiada por Theodorius e debaixo do controle do rei Hadhamar, havia conquistado. Já viam pelos céus de todo Dragoquistão os dragões com capacidades aprimoradas que lhes permitiam também aguentar o peso de mais e mais caixas de legumes, frutas, ovos e inclusive de peixes em uma única viagem até Draconthia. Venciam a distância do Mar de Oceplus em poucos minutos, tanto na ida, quanto na volta — algo que antes da modificação levava cerca de três dias para os dragões voltarem.
A mudança na logística teve um baque enorme nos produtores pelos fecundos campos do arquipélago, e logo perceberam que os dragões voltavam rápido e nem tinham mais o que carregar nas caixas que voltavam vazias. Só que adoravam ver as bolsas de ouro voltando mais rapidamente carregadas também, como pagamento.
Com isso, os produtores passaram em poucos dias a começar a sonhar com prosperidade e liberdade jamais imaginadas, e em menos de um mês, o nome de Theodorius era já muito conhecido.
O próprio castelo do rei Hadhamar precisou separar dragões unicamente para a tarefa de viajarem até as cavernas do Norte e serem carregados com mais minérios para os procedimentos. Assim, a própria região começou a se expandir ainda mais com o interesse na mineração renovado, embora ele tenha se preocupado em decretar, até mesmo por aconselhamento de Theodorius, que uma parte da região teria que ser reservada para os ninhos das mães dragões. Tudo para que pudessem botar em paz, longe das máquinas de extração.
O desejo pela exploração de pedras especiais também vinha das regiões fora dos domínios de Dragoquistão e de Draconthia. Primeiramente, o Continente do Leste, Merindrat, que possuía muitas reservas do alumínio necessário para mais chips, estava querendo firmar tratados comerciais com Dragoquistão para, em troca do alumínio, obter desconto na compra dos chips com os minérios necessários para seus dragões de areia e de pedra. O deserto de Radga e a Cordilheira de Aog eram gigantescos e por lá se habituaram tais raças dracônicas, porém, eram áreas carentes de minérios. Portanto, mesmo com o conhecimento descoberto, não eram autossuficientes na produção de chips de forma que futuramente pudessem competir com Draconthia.
Já outro grande aliado que apareceu para fazer tratado também com Draconthia foi o Continente do Oeste, Bravúquia, famoso por seus dragões das sombras e das luzes, capazes de produzir lindas estrelas usadas em joias pela elite rica e fogos de artifício que enchiam os céus de esplendor, principalmente na época da Bênção do Dragão.
— Não, eu até já falei com fornecedores com os quais ando fazendo amizade de Merindrat e de Bravúquia e mesmo tendo dado para eles vários retratos que eu desenhei do meu irmão, ninguém nunca o viu por lá. Pelo menos terei um jantar para o qual o rei Hadhamar me convidou, porque os reis de Merindrat e Bravúquia querem falar comigo. Vou aproveitar para ver se podem me ajudar e vou deixar muitos desenhos para que distribuam pelas terras deles. Nós dois vamos trazer de volta o Asafe. — Theodorius prometeu para o triste Amaranten que jantava ao lado dele, após mais um dia de muitas operações, uma salada com aspargos e linguiça assada que Theodorius sabia que era a comida favorita de Asafe. Sentia muita falta do irmão, mesmo tendo se enterrado por tantos dias no trabalho.
Porém, através da janela da cozinha, viu pelo rabo do olho, um brilho estranho amarelado refletindo ali nos vidros. Intrigado, e percebendo que Amaranten mexia o focinho sentindo um cheiro peculiar, rapidamente, Theodorius notou que era de fumaça, e correu abrir a janela.
Mas o que Theodorius presenciou, foi muito pior do que um simples acidente de comida queimada de algum vizinho por perto. Ao longe no horizonte podia ver Dragoquistão coberto por uma intensa fumaça negra de um fogo desprezível e maligno.
4.
Theodorius e Amaranten já sobrevoavam o centro, desesperados ao olhar as pessoas correndo em pânico. As barracas já chamuscadas cediam com casas pegando fogo e desabando.
Muita comida desperdiçada, muitos corpos carbonizados pelos chãos, e se essa imagem por si só já deixou Theodorius com o estômago apertado, ver raios brilhantes vermelhos, verdes, amarelos, azuis e pretos passando em altíssima velocidade pelo céu esfumaçado, mais ainda que o deixou aterrorizado.
— Não, não pode ser… São… minhas criações… O q… O que deu neles? — Theodorius manipulou com pressa Amaranten para ele entender que precisava voar com uma destreza maior do que nunca, para não ser atingido por diferentes tipos de labaredas. Mas o próprio dragão já tinha notado que precisava proteger seu dono e buscava mergulhar cada vez mais rápido no ar, permitindo que Theodorius pudesse ver a situação, mas sem por sua vida nem a dele em risco.
— Por que deu tudo errado? O que é isso tudo? — Theodorius estava completamente abalado com a tragédia. Jamais vira os dragões chipados agindo de forma tão descontrolada… tendo explosões de raiva dessa maneira… E juntar esses fatos o fez ter que se esforçar para não derrubar lágrimas nas costas de Amaranten, que gritava logo abaixo dele, e se chacoalhava para tirar Theodorius de seu entorpecimento emocional.
— O que? É o castelo? — Theodorius notou que Amaranten já sobrevoava há poucos metros acima do próprio castelo do rei Hadhamar, que já estava totalmente incendiado.
O dragão continuava guinchando para seu dono, e com a cauda apontava para o gramado um pouco mais distante, e quase à beira da floresta que volteava o castelo. Theodorius deu sinal afirmativo e Amaranten se apressou para ir até o local em poucos segundos.
— Majestade! Rápido, Amaranten, cuspa seus gelos! — Theodorius desmontou e pediu para o dragão apagar o máximo que pudesse do fogo ao redor do corpo do rei quase desacordado. Quase sem enxergar por causa da fumaça, ainda assim, o rei caído conseguiu reconhecer Theodorius que queria ajudá-lo a se levantar para colocá-lo sobre Amaranten e saírem de lá para um espaço mais seguro.
— Me perdoe, majestade, eu, eu… não vi nada desse tipo de reação em meus cálculos, nem mesmo em meus testes. Não consigo entender agora o que pode ter acontecido com os dragões para terem ficado assim, até porque os minérios só fazem bem para eles. Não compreendo como eles mudaram de comportamento assim.
— Você não tem culpa de nada meu rapaz. Apenas alguém que sabe manipular comportamentos de dragões e ameaçá-los com um dragão ainda mais feroz e perverso poderia implantar algo pior do que um chip neles: a mudança de lado.
— E se fiz isso, é para que você, seu velho decrépito, soubesse que um filho abastado seu merecia um tratamento um pouco melhor do que ter tido que se contentar em ficar limpando a merda dos seus dragões. Pensou que eu ficaria naquela vidinha para sempre, não é? Nem se preocupou em saber como eu estava e nem com quem eu fiquei depois que você largou a minha mãe, e anos depois, quando houve um grande período de fome, foi pedir sua ajuda, e você ordenou para que matassem a ela e ao marido dela.
“Se tivesse parado para olhar um minuto para mim, saberia que se a vida me tirou um pai decente, pelo menos me deu um irmão inteligente o suficiente para tanto resolver o problema da fome nos assolando a todos — exceto a você e aos seu cupinchas, claro — e depois, para me dar o poder que eu precisava para te colocar em seu devido lugar. E é lógico que eu não perderia tal chance, assim que pude identificá-la.
Asafe tinha pousado e soltado todas essas palavras de peso absurdo para a cabeça já impactada do menino e do velho de coroa. Veëbrat logo atrás dele, olhava friamente para Theodorius segurando a cabeça do rei, como se desejasse comer os dois em uma única dentada. O rei Hadhamar, mesmo sentindo muitas dores, sentou-se e tentou conversar:
— Foi um acidente. Meus guardas estavam sendo cercados pelo grupo faminto em que seus pais estavam, e precisaram se defender. Ainda assim, fiz de tudo para que indiretamente eu pudesse oferecer o melhor para você e seu meio-irmão terem profissões e uma casa para morarem.
— Nossa, quanta gentileza partindo de um cara tão corrupto — Asafe ironizou, aplaudindo sem vontade. — Eu e esse patife, sempre tivemos que nos virar sozinhos. Tal como o resto do seu povo, que só foi ver um vestígio da possibilidade de prosperidade depois que você mesmo viu que era um grande negócio usar as descobertas do meu irmão para assinar contratos comerciais que lhe rendessem navios de ouro com Merindrat e Bravúquia. Se não fosse pelas ideias insanas, porém funcionais de meu irmão, esse povo continuaria lutando para sobreviver mesmo com dragões que pouco poderiam fazer, se o rei que comandava tudo era tão doentio e egoísta, só pensando em si mesmo.
— Como “comandava”? O rei Hadhamar está ainda aqui com a gente. Asafe… você perdeu a cabeça?
Mas antes que Theodorius terminasse de falar, Asafe deu um último sinal para Veëbrat que com seus olhos cheios de um prazer em chamas, fez até a coroa derreter.
— O QUE VOCÊ FEZ? — Amaranten conseguiu pular a tempo na frente de Theodorius e o tirou da direção da visceral rajada de fogo. Porém, Asafe não respondeu nada ao irmão, e apenas virou as costas, montou e partiu novamente entre as nuvens negras da fumaça.
Ajoelhado no gramado ao lado do rei torrado Theodorius via, atônito, sua ciência transformada em triste caos.