O Cesto de Maçãs [Microconto]

Clarice e Edward estavam em lua de mel.

  E todo dia depois do jantar, Edward, por ser cozinheiro, preparava uma maravilhosa torta de maçã que Clarice comia até se esbaldar.

  Nunca tinha experimentado uma torta tão saborosa, doce e que enchia sua boca de um prazer que ela só encontrava rival no quarto com seu grande amor.

  Certo dia após voltarem de viagem e já terem se estabelecido no novo lar Clarice, dando uma pausa nas digitações de seu novo livro, admirava as belas macieiras das terras que seu amado herdara de sua família. Nesse momento, uma velha agricultora trabalhando por ali, veio e lhe disse macia e subitamente: “Nem tudo é o que parece, senhora.”

  “Como assim? O que a senhora gostaria de me dizer?”

  “Está vendo o quanto que estas maçãs são maravilhosas?”, a velha indagou apontando com um olhar intrigante para os frutos que Clarice alisava com apreço.

  “Claro que sim! Durante nossa lua de mel, o Edward me preparou tortas deliciosas com elas!”

  A velha deixou então o cesto que carregava no chão ao lado de seus pés, e com o afeto de uma mãe, segurou no braço de Clarice. Com um estranho mistério no rosto, voltou a lhe avisar:

  “Nem tudo é o que parece, meu bem.”

  E da mesma forma enigmática, pegou seu cesto e foi se distanciando, deixando Clarice sem maiores explicações.

***

  Naquela mesma noite, Clarice, sentindo um estranho desconforto com a dúvida que a velha agricultora plantara em sua mente,  resolveu ir ver seu marido na cozinha enquanto ele preparava o jantar. Porém, desconfiou da porta chaveada, e sem conseguir abri-la, voltou para seu lugar à mesa.

  Da mesma forma como já era hábito de todas as noites, Edward dispensou todos os funcionários da rica casa. Então, arrumou a mesa elegantemente falando do seu dia de trabalho no restaurante da cidade e perguntou para Clarice, que ocupava o tempo escrevendo livros infantis e logo voltaria a lecionar, como ela tinha passado o seu.

  No entanto, Clarice, que esperava poder contar tudo para seu marido — dado seus votos de casamento —, ficou pela primeira vez com medo da reação dele caso contasse sobre a conversa suspeita com a velha no campo.

  Comeu sua torta após a farta refeição. Só que todo o encanto do doce tinha se perdido com o gosto amargo de sua dúvida. Afinal, se já não bastasse os dizeres da velha, ainda não entendia porque Edward trancou a porta da cozinha. E o pior: por que fingiu que nem a ouviu o chamando.

  Logo cedo na manhã seguinte, antes mesmo que Edward acordasse, silenciosamente, Clarice se arrumou, desceu a escadaria e com uma bicicleta, percorreu por toda a área plantada de macieiras. Mas para seu infortúnio e para a tristeza de todos os outros funcionários da fazenda, a anciã estava morta. Com uma maçã na boca, de forma extremamente grotesca, jazia envenenada aos pés da mesma macieira em que Clarice a encontrara no dia anterior.

  Apavorada, ligou para a polícia, e com a perícia feita, descobriu que a velha partiu devido ao agrotóxico pesado que era usado no campo, mas que isso fora resultado de anos tendo que respirar a mesma substância. E, para a insatisfação de Clarice, que não aceitou o resultado, os exames apontaram que ninguém tinha posto a maçã na boca da idosa, pois não tinha digitais alheias, e que ela morreu enquanto comia a fruta.

  Edward fez de tudo para consolar Clarice naquela noite. Até disse que prepararia uma aconchegante sopa para ajudá-la a se acalmar pelo o que passou durante o dia.

  E ainda com as palavras da velha rodando sua cabeça (e menos ainda que agora Clarice poderia saber do que se trataram) tentou ir falar com o Edward, mas de novo a porta da cozinha estava chaveada.

  “Não, eu não vou querer sobremesa, hoje”, Clarice recusou o pedaço transbordando de calda vermelha no prato. nem Nem mesmo suportava mais o cheiro de maçã por perto.

  “Mas, querida, é a sua sobremesa favorita! Eu a preparei para você com todo o meu coração.”

  “Eu te agradeço, meu amor, mas não estou bem e vou dormir mais cedo.”

  E com um sorriso leve, Clarice saiu de seu lugar à mesa. Assim que pôde subir a escada sem Edward ver seu rosto, seu sorriso se desmanchou em aflição.

  Esperou mais de hora, quando finalmente o marido apareceu para se pôr para dormir ao seu lado.

  Ficou fingindo ainda por mais algum tempo já estar dormindo. Quando percebeu que estava segura, Clarice vestiu os chinelos e seu roupão e desceu para a cozinha.

  Em todos os outros momentos do dia, o local sempre estava acessível. Ela podia sempre pegar algo na geladeira e nos armários. Até mesmo os outros funcionários poderiam transitar normalmente. As coisas só se tornavam incomuns na hora do jantar, principalmente na hora em que Edward fazia sua torta especial, recheada de maçãs e carinho.

  Clarice abriu a geladeira e reparou com mais atenção pela primeira vez que não tinha uma única maçã ali. Abriu armário por armário, e nenhum saco da fruta. Nem mesmo poderia checar o lixo que já tinha sido descartado.

  Mas ao retornar para a sala de estar, após checar as lixeiras do lado de fora, notou um movimento estranho vindo em direção antes mesmo de trancar a porta da frente. Seu coração disparou. Porém, era apenas um dos jovens agricultores que estava até mais apreensivo do que ela e com um envelope nas mãos.

  “O que você precisa, meu jovem? O senhor Edward já está dormindo faz tempo. Só poderá falar com você ao amanhecer, no campo.”

  “Perdão, senhora. Sei o quanto o dia foi difícil, mas sou o filho da senhora que morreu, a dona Margareth, e tenho uma carta comigo que ela exigiu em seu leito de morte para que eu lhe entregasse, assim que eu pudesse achar a senhora longe da companhia de seu marido.”

  A explicação do moço abatido estarreceu Clarice. Agora fazia sentido o estado de agitação dele: tinha medo que Edward o visse ali dando-lhe tal carta. E o nervosismo do moço apenas colaborou para embasar uma crescente suspeita dela.

  Com um agradecimento, Clarice pegou a carta e leu a mensagem que enfim derrubou todas as suas dúvidas. Mas também seus sonhos mais açucarados, entendendo que até o fruto mais doce pode ser falso e estar completamente estragado.

  Assim, sem hesitar, no verso da própria carta da agricultora, Clarice deixou para o marido também uma mensagem, antes de pegar sua bicicleta e salvar sua vida, para que não virasse mais uma leitoa com uma maçã na boca:

  “Você só foi uma maçã podre que tive que comer durante um tempo, mas ainda acredito que haverá frutos melhores em meu cesto.”

Por Gisele Portes

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